Topo

Igreja Lagoinha compra Teatro Leblon, e moradores fazem abaixo-assinado

Sala Marília Pêra no antigo Teatro Leblon, no Rio - Camille Lichotti/UOL
Sala Marília Pêra no antigo Teatro Leblon, no Rio Imagem: Camille Lichotti/UOL

Do TAB, no Rio

14/05/2023 04h01

No fim de abril, a Igreja Batista da Lagoinha anunciou sua nova "casa" no Rio: o antigo Teatro Leblon, que foi a leilão por R$ 9 milhões. O imóvel está localizado em uma galeria do edifício Terrasse Center, que, além de pontos comerciais, conta com dois blocos residenciais numa rua arborizada do bairro com o metro quadrado mais caro do país.

Artistas e produtores lamentaram o fechamento do espaço cultural, uma tragédia anunciada há anos como consequência da crise que atinge o setor. Mas foi a notícia de que o imóvel poderia virar uma igreja que revoltou moradores do Terrasse Center. Em grupos de WhatsApp, eles desabafaram sobre as inconveniências que o templo iria trazer ao local: dificuldade para estacionar o carro na rua, cantorias dos cultos e "bagunça" na vizinhança. Alguns ainda reclamaram que se tratava de uma igreja frequentada por Jair Bolsonaro e sua esposa Michelle.

"Olha que inferno", resume a aposentada Claudia Lima, 64, moradora do prédio. Ela diz que gostava da facilidade de ter um teatro a poucos andares de casa e frequentava o espaço nos tempos áureos da casa de espetáculos. Uma das últimas peças que assistiu ali foi o monólogo "A Alma Imoral", da atriz Clarice Niskier, baseado no livro do rabino Nilton Bonder. Também se lembra da montagem "Beatles Num Céu de Diamantes", com direção de Charles Möeller e Claudio Botelho, exibida em 2008.

"O Leblon está se tornando um bairro de pouca cultura, e o fechamento do teatro é mais uma prova disso", afirma. "Você anda na rua e só tem restaurante, bar e farmácia. Agora é restaurante, bar e igreja, né?". A aposentada foi uma das moradoras que torceu o nariz para a inauguração da Lagoinha no bairro que é símbolo da elite carioca. "Imagina uma igreja aqui, imagina o público que vai vir frequentar o espaço", disse ela, que não quis especificar a que tipo de "público" se referia por temer soar "preconceituosa".

Bilheteria fechada - Camille Lichotti - Camille Lichotti
Bilheteria da sala Marília Pêra fechada no Leblon: 'está se tornando um bairro de pouca cultura'
Imagem: Camille Lichotti

Cruzada contra o culto

Os moradores organizaram um abaixo-assinado contra a instalação da igreja no local e pediram providências à administração do prédio, que acionou o advogado do condomínio para avaliar a situação.

O advogado Marcos Moura Messias explicou que a convenção do condomínio prevê apenas atividades comerciais e residenciais no Terrasse Center — o que não se aplica a cultos de templos religiosos. "O condomínio não tem poder de regular quem compra os imóveis, então o espaço pertence ao comprador, não há nenhuma objeção quanto a isso", explica. "O que nós fazemos é garantir que as regras do condomínio sejam respeitadas."

Segundo ele, a Lagoinha pode judicializar a questão, mas dificilmente terá sucesso porque a convenção do prédio não fere nenhuma lei constitucional — apenas não prevê o exercício de culto. Para que a regra interna mude, é preciso aprovação de dois terços dos condôminos.

Detalhe na sala Marília Pêra no Leblon - Camille Lichotti - Camille Lichotti
Foto da atriz Marília Pêra no antigo Teatro Leblon, vendido para a Igreja Lagoinha
Imagem: Camille Lichotti

Ao que tudo indica, a Lagoinha comprou o imóvel na intenção de realizar cultos no local. No Instagram, a igreja publicou um vídeo dos membros caminhando pelo teatro e apresentando a sala Marília Pêra como sua nova filial na zona sul do Rio. Atualmente, a Igreja realiza suas atividades em outro antigo teatro da região: o teatro Clara Nunes, na Gávea, que é alugado.

O advogado Marcos Moura Messias disse que a Lagoinha ainda não entrou em contato com a administração do prédio para resolver o impasse ou solicitar um parecer sobre a impossibilidade de realizar seus cultos na galeria. Procurada pelo TAB, a igreja também não se manifestou.

A análise do advogado tranquilizou a aposentada Claudia Lima e os moradores que são contra a chegada do templo. "Igreja a gente sabe que não vai poder virar. Só se eles abrirem loja de vender santinho, mas crente não acredita em imagem, né?", diz a moradora. "Eu acho é que eles estão ganhando muito dinheiro."

Sob comando do clã Valadão desde 1972, a igreja teve um crescimento exponencial nos anos 2000, com o sucesso da banda Diante do Trono. Hoje, representa o futuro do movimento evangélico no Brasil: de perfil ideológico de direita, tem cerca de 700 unidades presentes em 14 países.


'O Leblon precisa de Deus'

A manicure Lucineide Maximiliano, 51, que trabalha num salão da galeria a poucos metros do Teatro Leblon, torce para que a Igreja encontre uma brecha nas regras. Ela conta que ficou feliz com a notícia da venda do teatro para a Lagoinha, que é uma "igreja tremenda". "O Leblon precisa de Deus, e isso vai chamar as pessoas para ouvir a Palavra", afirma ela, garantindo que algumas de suas clientes dividem a mesma opinião.

Lucineide mora em Jacarepaguá, na zona oeste da cidade, e nunca assistiu uma peça — nem no Teatro Leblon nem em nenhum outro. "Eu separo as coisas de Deus das coisas do mundo. Prefiro fazer as coisas para Deus", explica. Da sala Marília Pêra, suas únicas memórias são das noites de abertura de espetáculos, quando eram realizados coquetéis e festas. "Essas coisas de rico", resume.

Lucineide frequenta a Assembleia de Deus, mas festejou, junto com colegas do salão, a possibilidade de participar dos cultos da Lagoinha próximo ao local de trabalho. "Aqui [no Leblon] as pessoas são muito vaidosas e voltadas para o dinheiro. Você anda na rua e vê todo mundo no bar, fumando na sua cara e te olhando torto", comenta a manicure, que trabalha há mais de 30 anos no bairro. "Realmente precisa abrir mais igreja aqui."

Agora, Lucineide diz que "só resta orar" para que a Lagoinha de fato ocupe o imóvel. "Esse teatro nem funcionava direito mesmo, foi melhor ter dado um destino bom."

Sala Fernanda Montenegro - Camille Lichotti - Camille Lichotti
A sala Fernanda Montenegro, do mesmo teatro, estava fechada desde 2017
Imagem: Camille Lichotti

Idas e vindas na pindaíba

Foi em 2017 que o Teatro Leblon ameaçou encerrar as atividades pela primeira vez. A sala Tônia Carrero já estava fechada havia um ano por causa de uma crise financeira, e o administrador não conseguia bancar os custos das duas salas restantes, que levam o nome das atrizes Fernanda Montenegro e Marília Pêra.

Nessa época, a Igreja Universal do Reino de Deus demonstrou interesse em adquirir o imóvel, mas o negócio não prosperou.

Como um paliativo para dar sobrevida ao teatro, os atores Marcos Caruso, Mateus Solano e Miguel Thiré levaram ao teatro as peças "O Escândalo Philippe Dussaert" e "Selfie". Na época, o produtor Carlos Grun, responsável pela produção, disse que a medida pontual não salvaria o estabelecimento, mas seria um grito de socorro para o mundo da arte.

O pedido foi inócuo. A sala Marília Pêra ficou fechada a maior parte do tempo até 2019, quando ganhou patrocínio do grupo PetraGold. As cadeiras, equipamentos e estrutura foram todas reformadas.

Veio a pandemia e a sala funcionou aos trancos e barrancos, como praticamente todo o setor cultural. Os produtores responsáveis chegaram a organizar peças transmitidas à distância e distribuíram ingressos sociais, mas o fim era iminente. Em meados de 2022, a PetraGold retirou o patrocínio, e o teatro voltou a ficar "órfão". Sem o socorro de representantes do setor cultural, acabou vendido definitivamente.

Essa não foi a primeira vez que a Lagoinha aproveitou a decadência do setor cultural para fazer negócio. Além de alugar o teatro Clara Nunes, em fevereiro deste ano a igreja também inaugurou um templo no local onde antes funcionava o Ita Music, única casa de shows que havia na cidade de Itaboraí, região metropolitana do Rio.

Sucesso que não volta mais

A cabeleireira Nazir de Oliveira, 72, que trabalha em um outro salão de beleza da galeria, acredita que a crise dos teatros não se restringe ao Leblon: é um fenômeno de todo o Rio.

"É até difícil encontrar um teatro hoje, antigamente não era assim", lembra ela. Na juventude, a cabeleireira participou de clubes teatrais e frequentou salas em diferentes pontos da cidade na companhia da prima. "A gente se arrumava toda para ir ao teatro, colocava vestido novo e tudo. Era a nossa diversão. Vi todos os melhores atores no palco, até o Antônio Fagundes."

Nazir prefere guardar na memória os tempos de sucesso Teatro Leblon, quando as filas davam voltas nos corredores da galeria — cenas de um passado que, segundo ela, não volta mais. "Estamos todos muito tristes aqui. Cada teatro que fecha é um pedacinho de arte que morre."