'Vadia': servidor da UFSC usou dados pessoais de alunas para assediá-las
Um servidor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) usou dados pessoais de alunas cadastradas no sistema da faculdade para assediá-las virtualmente. O técnico de tecnologia da informação Fabian Früchting, 46, atua na chefia do setor de TI do campus da UFSC, em Blumenau (SC). Cerca de 20 alunas receberam mensagens impróprias e o denunciaram por assédio e importunação. Em alguns casos, o técnico se referiu às garotas com xingamentos — como "vadia" — e escreveu textos obscenos. Um dos prints de mensagens de WhatsApp obtidos pelo TAB mostra o servidor oferecendo dinheiro para uma aluna realizar atos sexuais.
Fabian Früchting abordou as alunas pelo WhatsApp em fevereiro de 2022. O caso só veio a público no início deste mês, quando uma das vítimas expôs nas redes sociais a demora da UFSC em finalizar o processo administrativo contra o servidor. A informação repercutiu em jornais locais.
Procurado, o advogado do acusado disse que no momento oportuno a defesa vai se manifestar nos autos do processo administrativo.
"A gente estava esperando o assunto ser resolvido administrativamente, mas até agora, nada", diz a estudante de engenharia Letícia Ostrowski, 23. Ela recebeu a primeira mensagem de Fabian em 10 de fevereiro de 2022. Ele se apresentou como servidor da UFSC e disse que estava entrando em contato para falar sobre o cadastro no Sigeo, um sistema que armazena dados pessoais — como nome completo, número de telefone, endereço etc — de estudantes que procuram estágio.
Depois de se apresentar e dizer que iria "desativar" o sistema, o servidor escreveu à Letícia afirmando que ele era bissexual e havia feito sexo oral em um homem. A estudante, desconfiando do comportamento do servidor, perguntou se o responsável pelo sistema não era outro funcionário mais antigo da universidade. Depois disso, ela parou de responder às mensagens. No dia seguinte, Fabian entrou em contato novamente perguntando se a jovem ainda engravidava.
"Eu fiquei em choque. Nunca imaginei que ficaria exposta assim no ambiente onde eu estudo", lembra Letícia. Ela mandou os prints da conversa para um grupo de meninas da universidade e perguntou se outras haviam recebido mensagens semelhantes do técnico de TI. "Aí começou a chover relatos, alguns muito piores que o meu", conta.
'Já comi muita vadia igual a você'
A abordagem era sempre a mesma: Fabian se apresentava como funcionário que operava o sistema da universidade e, em seguida, dizia que era bissexual e que queria "desabafar" com as alunas, chamando-as de amigas e abordando assuntos incompatíveis com o trabalho.
Dos cerca de 20 casos reunidos pelo coletivo da universidade, o TAB teve acesso a prints de oito conversas. Em uma delas, o servidor diz a uma estudante que não poderia "olhar muito" para sua foto de perfil porque iria se masturbar depois pensando nela. Prints mostram ainda o servidor dizendo à estudante que pagaria para vê-la fazendo sexo oral em outro homem: "Se quiser ganhar dindin [dinheiro] me avise [...] Eu e você mamando um menino, topa?"
Poucos minutos depois, ele diz: "Você quando foi fodida a primeira vez deve ter pulado de alegria." Mesmo ignorado, o homem continuou a ofender a aluna, chamando-a de "vadia" e dizendo que duvidava que ela nunca tivesse feito sexo oral em alguém.
A jovem, então, respondeu que a conversa acabaria ali, e Fabian se referiu a ela como "vadia" novamente. Em seguida, completou: "Eu tenho 40 anos, já comi muita vadia igual a você, mas tô numa fase que gosto de admirar [...] O tempo todo deve ter nego querendo te comer. Aproveite porque daqui [a] uns 10 anos isso tudo acaba. Vais virar uma vadia de 30 anos procurando casamento."
Ele assediou a mesma estudante em uma série de mensagens obscenas, das 17h49 às 20h48, insistindo numa resposta.
Em outro caso, Fabian fez comentários sobre o corpo de outra estudante. Disse que a reconheceu pela foto de perfil. "Essa pandemia te fez bem. Você tinha um jeito de adolescente [e] pela foto parece que você descobriu teu lado mulher, lado fêmea. Tá toda poderosa na foto", escreveu ele. Em seguida, chamou-a de "vadia linda".
O servidor chamou uma terceira estudante da UFSC de "vadia" e mais outra de "mulherão".
"Eu me senti invadida e intimidada", afirma uma das vítimas, que pediu para não ser identificada. "Quando começamos a juntar os relatos, foi uma situação muito desconfortável". Ela conta que algumas meninas tiveram medo de frequentar a universidade, por correrem o risco de encontrar o servidor no campus. Também temiam abrir um boletim de ocorrência. "A gente não sabe do que ele é capaz, ele teve acesso até ao nosso endereço."
Processo interminável
Os prints das conversas foram encaminhados a um coletivo feminista da UFSC, e uma professora ajudou as alunas a fazerem a denúncia à direção da universidade. "No primeiro momento a gente teve esperança de que alguma coisa seria feita. Mas a UFSC parece que lavou as mãos. Ficamos sem resposta", acusa uma das vítimas, que se formou recentemente.
Mais de um ano após o ocorrido, o servidor Fabian Früchting ainda trabalha na universidade. No ano passado, a UFSC abriu um processo administrativo disciplinar. Em abril de 2022, o servidor chegou a ser afastado preventivamente por 120 dias, mas voltou a trabalhar no campus de Blumenau. Em julho passado, a universidade realizou uma audiência interna, por videochamada, para ouvir as vítimas e o servidor.
O TAB conversou com duas alunas que participaram dessa audiência. Na ocasião, o técnico pôde direcionar perguntas às alunas vítimas de assédio. "Ele me perguntou por que eu não bloqueei ele logo na primeira mensagem. Eu disse que não fazia sentido bloquear um funcionário da universidade, achei que ele estava fazendo o trabalho dele", disse outra vítima, que também não quis se identificar. "Depois ele perguntou se eu não achava que ele estava bêbado quando mandou as mensagens. Isso nem faz sentido, ele mandou várias coisas em horários e dias diferentes", diz.
Este mês, quando o caso veio a público na internet, a Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso de Blumenau abriu inquérito contra o servidor da UFSC. Na segunda semana de junho, pelo menos duas vítimas prestaram depoimento à polícia.
"Agora eu já me sinto mais confortável para levar isso à Justiça, não tenho medo", afirma Letícia Ostrowski, esperando que outras meninas se encoragem a prestar depoimento.
Violação de dados pessoais
Uma das alunas abordadas por Fabian Früchting o questionou sobre o uso indevido de dados pessoais qundo ele mandou uma mensagem mostrando ter acesso não só ao número de contato, mas a outras informações. "Você atualizou teu currículo lá [no SIGEO] dia 03/05 às 01:31, madrugadora você [...] Você nasceu 24/11, [é] sagitariana. Menina de sagitário é ansiosa", escreveu ele no dia 8 de janeiro de 2022.
A conversa a que o TAB teve acesso mostra a aluna argumentando que o técnico não deveria ter acesso a seus dados pessoais. Fabian respondeu: "Não tem informação nenhuma compartilhada com ninguém. Eu sou o programador, eu que fiz o site no qual você se inscreveu [...]".
Especialmente por se tratar de uma instituição pública, o caso da UFSC demonstra o nível de vulnerabilidade causado pelo tratamento indevido de dados sensíveis. Segundo o pesquisador Nathan Paschoalini, do instituto DataPrivacy Brasil, o uso de qualquer dado além da finalidade para a qual eles foram entregues descumpre a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados). A lei de 2018, entretanto, regula o aspecto civil da violação de dados, mas não imputa crimes.
"Da perspectiva da proteção de dados, qualquer desvio de finalidade já é grave por si só, independentemente do teor da mensagem", explica ele. Na avaliação do especialista, até nos casos em que não há textos obscenos, como aconteceu com Letícia, houve violação de direitos.
Para o pesquisador do DataPrivacy, algumas medidas poderiam ter sido tomadas para evitar o uso inadequado das informações pessoais. A primeira delas, diz ele, é descentralizar a base de dados. No caso do sistema da UFSC, pelo relato do servidor ao abordar as estudantes, vários tipos de informações estavam centralizadas na mesma estrutura de dados, o que facilita a violação e identificação pessoal.
"Pensando no caso de um sistema de estágio, talvez o endereço não seja uma informação tão necessária para estar na base", sustenta Paschoalini. Para ele, esse tipo de violação compromete outros direitos fundamentais: "Pensar em proteção de dados também é uma forma de garantir a segurança das mulheres. Ter acesso a uma base de dados sensíveis também delimita uma estrutura de poder."
O outro lado
Procurada pela reportagem, a UFSC informou, em nota, que o servidor Fabian Früchting não tem mais acesso ao sistema que lhe permitiu obter informações das alunas e que a instituição realizou "todos os procedimentos administrativos previstos nos estatutos e na legislação vigente".
Sobre o resultado do processo disciplinar contra o servidor, cuja decisão compete à reitoria, a universidade disse que não pode se manifestar porque as informações são sigilosas.
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