Topo

'Deus é empatia', diz pastora LGBT+ que saiu da Lagoinha de André Valadão

Pastora Priscila Coelho na primeira reunião do movimento Cores, em Belo Horizonte, após rompimento com a Igreja Batista da Lagoinha - Sara Carolina Avelar Guimarais/Movimento Cores
Pastora Priscila Coelho na primeira reunião do movimento Cores, em Belo Horizonte, após rompimento com a Igreja Batista da Lagoinha
Imagem: Sara Carolina Avelar Guimarais/Movimento Cores

Leandro Aguiar

Colaboração para o TAB, de Belo Horizonte

18/07/2023 12h45

Na noite de segunda-feira (17), o segundo andar de uma livraria num shopping center no centro de Belo Horizonte estava repleto de gente: mães e filhas, casais hétero e homoafetivos, jovens tatuadas com os cabelos pintados de rosa, uns mais formais com roupas de escritório, outros com camisas de grupos de rap. Eles estavam ali para o encontro do movimento Cores, cuja intenção é "levar Jesus aos LGBTQIA+".

Era um dia especial: a primeira reunião desde que o grupo anunciou sua emancipação da Igreja Batista da Lagoinha devido às declarações agressivas de André Valadão, líder da denominação, contra a comunidade LGBTQIA+.

Com longos dreads e diversas tatuagens, a pastora Priscila Coelho, 39, fundadora do Cores, abriu a sessão. Pediu para os presentes não responderem as mensagens de ódio que chegavam ao grupo nas redes sociais. Em seguida, deu início à roda de oração da noite, dedicada "a liberar perdão aos que nos veem como inimigos".

Sem citar André, ela detalhou a decisão ao TAB: "A escolha de sair tem a ver com a minha convicção e com a forma como vejo a Deus: um Deus de amor, tolerante, empático, misericordioso, que lida com as pessoas com afeto, carinho, cuidado e respeito. Isso fez parte da Lagoinha por muito e muito tempo. Mas, na atualidade, não concordo e não compactuo com o que está acontecendo".

Uma semana antes, no encontro do Cores no dia 10 de julho, quando Priscila anunciou que deixaria a Lagoinha, muitos ficaram preocupados com um possível fim do movimento. A pastora os tranquilizou: "Vou continuar conduzindo com muita honra, prazer e orgulho a comunidade LGBTQIA+. Vocês são o meu orgulho, tenho muito orgulho de amar e de poder cuidar de vocês".

Já no dia 17, a pastora contou que o grupo não só prosseguiria, mas se tornará uma igreja. Além dos dois encontros semanais, celebrarão cultos aos domingos, ao estilo evangélico "raiz" — nas casas dos próprios fiéis.

Antes de frequentar a igreja da Lagoinha, Priscila passou por maus bocados. Filha de um pai ausente, pastor pentecostal, sofreu violência sexual na infância e teve problemas com drogas na juventude. Em 2008, após ouvir uma pregação do próprio André Valadão, converteu-se na Lagoinha, tornando-se uma fiel das mais ativas.

Trabalhou voluntariamente e depois foi contratada como repórter e apresentadora na rede Super, a emissora de TV da igreja. "Fui mantida emocionalmente, afetivamente e financeiramente por essa instituição, a quem devo muito", afirma.

Em 2014, procurou Márcio Valadão, então líder da Lagoinha, com a intenção de criar um novo grupo na igreja. "Disse a ele que, como venho da comunidade LGBTQIA+, sei o que é a questão na pele, e precisava trabalhar com essas pessoas." O pastor a apoiou, e surgiu assim o movimento Cores.

Priscila foi ordenada pastora em 2021 por Márcio, de quem é próxima e descreve como "um homem íntegro, honesto e gentil". "Que me viu não pela minha aparência, mas pelo Deus que habita em mim", diz.

Após o anúncio de seu desligamento da Lagoinha, o patriarca do clã Valadão foi um dos primeiros a desejar sucesso a Priscila: "Continue sendo uma testemunha do que Jesus pode fazer em qualquer pessoa", escreveu Márcio em suas redes sociais. Já André não se manifestou publicamente.

A sucessão

André tornou-se líder global Lagoinha no fim de 2022, para a surpresa de muitos — no dia 11 de dezembro, quando anunciou sua aposentadoria, Márcio delegou a matriz da Lagoinha, em Belo Horizonte, ao jovem Flavinho, que até então era pastor na unidade do bairro belo-horizontino Savassi, que abrigava o Cores. Uma semana depois, os fiéis foram informados de que André assumiria a direção-geral da igreja, que possui cerca de 700 unidades no Brasil e em outros 13 países.

A "solução" de Márcio visava "equilibrar duas linhas divergentes nos bastidores", conta sob a condição de anonimato um funcionário da Lagoinha: quem defende uma igreja "distanciada de ideologias políticas extremistas, e a força hoje majoritária, que abraçou o bolsonarismo".

Já de início algumas igrejas resolveram desligar-se da Lagoinha, mas o Cores preferiu "lutar e resistir", conta Priscila. Ela pediu aos seus seguidores que não alimentassem intrigas: "Nunca paguem o mal com o mal".

A convivência com as ideias de André tornou-se insustentável a partir de junho, o mês do Orgulho LGBTQIA+, quando, de seu púlpito na Flórida, nos Estados Unidos, o líder evangélico realizou a pregação intitulada "Deus odeia o orgulho". No telão detrás de si, "orgulho" estava grafado nas cores da bandeira do movimento LGBT+ — "não é um movimento, é uma religião!", bradou André.

Um mês depois, ele retornou ao tema. "Agora é a hora de tomar as cordas de volta e dizer 'nananinanão', 'pó parar', reseta", pregou André, referindo-se aos LGBTQIA+, declarando então: "Aí Deus fala: não posso mais, já meti esse arco-íris aí. Se eu pudesse, matava tudo e começava tudo de novo. Mas já prometi a mim mesmo que não posso, então agora é com vocês".

Após a repercussão negativa, André disse ter sido mal interpretado e alegou ser vítima de "cristãofobia". "Nunca será sobre matar, segregar, mas, sim, sobre resetar, levar de volta à essência, ao princípio", justificou-se, numa postagem em suas redes sociais.

Primeiro culto do movimento Cores, em Belo Horizonte, após rompimento com a Igreja Batista da Lagoinha - Sara Carolina Avelar Guimarais/Movimento Cores - Sara Carolina Avelar Guimarais/Movimento Cores
Núcleo LGBTQIA+ defende 'Deus de amor, tolerante, empático, misericordioso'
Imagem: Sara Carolina Avelar Guimarais/Movimento Cores

'Um Deus de amor'

Nesse período, o clima entre os fiéis do Cores era de "luto", lembra Priscila. "Nos entristecemos muito. Sempre estive ligada de forma muito forte à comunidade da Lagoinha, que me acolheu nos 15 anos em que estive lá", diz.

Milhares de mensagens chegaram à pastora, muitas de pessoas LGBTQIA+ que se diziam interessadas em ouvi-la falar sobre Jesus e em conhecer o Cores, mas que, em função do que dizia o líder da Lagoinha, preferiam manter-se distantes da igreja.

"Essa foi a razão que me fez refletir sobre estar na Lagoinha", explica Priscila. Outro fator de peso, conta, foi a saúde mental dela própria e dos mais de 600 fiéis que acompanham o Cores.

Seguiram-se dias de oração, jejum e conversas para ela e os membros mais próximos do movimento. Depois de consultá-los, a pastora procurou a direção da Lagoinha, expondo seus motivos. Falou inclusive com André, que em nenhum momento pediu o afastamento do Cores da denominação, "pelo contrário, nos foi pedido que continuássemos, mas decidimos que não", relata Priscila.

Lésbica assumida, Priscila optou pelo celibato, "escolha pessoal" que não é imposta a quem decide acompanhar o Cores. "Respeitamos as perspectivas variadas que temos no próprio movimento: temos pessoas casadas, celibatárias, pessoas que não entendem a homossexualidade como pecado, pessoas que entendem a homossexualidade como pecado, pessoas em dúvida, pessoas inclusivas e afirmativas, pessoas de outras religiões. Nas escrituras é isso que está dito, esse é o nosso Jesus, um Deus ensaguentado de amor por todas as pessoas", conclui.

Primeiro encontro do movimento Cores, em Belo Horizonte, após rompimento com a Igreja Batista da Lagoinha - Leandro Aguiar/UOL - Leandro Aguiar/UOL
Imagem: Leandro Aguiar/UOL