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Trombadas

A carta de Ronaldinho

Christian Carvalho Cruz/UOL
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Colunista do TAB

21/10/2021 04h00

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Prezado amigo Ronaldinho,

aqui fala Ronaldinho. Ronaldinho Chaveiro. Não leva a mal a intimidade, parceiro, mas tá na cara que a gente é até mais que amigo. Nóis é truta mesmo. Faz milianos que eu te vejo todo dia de manhã quando escovo os dentes e faço a barba. Nós dois frente a frente no banheiro trocando ideia, e aí como é que tá? como vai ser o dia?, hoje faz frio ou calor?, vai ter muito serviço?, o trânsito tal e coisa, pra depois eu ir tomar o meu café. Ontem minha mãe ligou. Ela disse pra eu fazer uma ginástica e emagrecer, que os camarada lá do Morro Grande querem que eu volte a jogar com eles.

O que cê acha, fera? Devo? Pra Lia, minha esposa, antes de pensar em bola eu preciso é afinar a carcaça pra passar pela porta do serviço. Sacanagem dela, porque a porta tem só 50 centímetros de largura, fora do padrão. Minha oficina fica num baixo de escada, esses espaços que nas casas e nos prédios o pessoal usa pra guardar tranqueira. Pra mim é local sagrado, tipo o Pacaembu ou o Camp Nou pra você. Eu trampo aqui faz 18 anos. Pago milzão por mês de aluguel. Considero caro, mas não se acha nada por menos nessa região da Vieira de Carvalho, Rua Vitória e Rua Aurora.

E é apertado sim, fazer o quê? Estilo alçapão. No começo eu batia a cabeça toda hora, me arranhava e ficava mais na calçada do que dentro, porque sufocava. Aí pendurei um ventilador e fui acostumando. Tem tempo ruim, não, tio. Hoje, se eu quiser, ando de olho fechado aqui dentro. E tudo o que eu preciso taí. As ferramentas pra trabalhar, um computador pra internet, a tevezinha pra jogar videogame, micro-ondas pra marmita, cafeteira, geladeirinha, minha privadinha e um colchão. Quando dá enchente ou tem greve de busão e fica complicado voltar pra casa, que eu moro no Grajaú, o bairro do Criolo, o Grajauex, duas laje é tríplex, quando complica o retorno eu empurro o balcão pro lado, abro o colchão no chão e passo a noite aqui. Tranquilinho, vixe. Fenômeno, amigão, vê se não: a minha suíte presidencial cinco estrelas do Arouche deve ter o tamanho do banheiro da sua lancha, hein? É nóis.

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O videogame de Ronaldinho, no local de trabalho
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Tô reclamando não. Eu amo ser chaveiro. E você sabe o que é ter amor no que faz. Meteu sete gols numa única Copa do Mundo, falaí. Comecei nesse serviço com um tio meu, que era chaveiro já. Eu não gostava de ir pra escola, só queria jogar bola, aí ele começou a me ensinar. Eu tinha 12 anos e percebi que tinha o dom. Uma coisa inexplicável. Parecia que Deus tinha me mandado pra Terra pra cortar chave, troca miolo e abrir fechadura. Mas sei que me mandou pra jogar bola também. Aí, posso dizer? Eu era bom. Magrelinho, meio dentucinho, só na arrancada forte, drible em velocidade, e muito, muito gol, gol pacarai, célôco, tanto gol que começaram a me chamar de quê? Ronaldinho, claro. Tempo depois apareceu o Gaúcho e você mudou pra Ronaldo. Mas eu preferi manter o Ronaldinho. Razões sentimentais: em time que tá ganhando não se mexe.

Eu jogava de 9 mesmo. Mas não era centroavante lerdão, não. Nem mascarado. Se desse vontade eu voltava pra marcar e roubava o cara sem falta, na bola lisa mesmo. Eu era muito rápido. Dava o corpo pro cara, levava na malandragem, catava aqui, jogava na frente e já era. O baguio era doido. Eu sentia que ia dar certo no futebol pela bola que eu jogava e por causa da minha pessoa, assim parecida com a sua nas parte de espírito também. Eu era tipo um padrinho pro time, todo mundo gostava de mim. Não era aquele cara mala que todo mundo atura só porque ele resolve o jogo e garante o bicho. Nóis é outro esquema, né, fi? Imagina se nóis ia ficar nessa de cai aqui e rola ali em plena Copa do Mundo.

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Ronaldinho: quando ele corta uma chave, não tem presente nem passado
Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Fenômeno, eu preciso abrir meu coração pra você, irmão. Te admiro demais, véi. Não é só pelo seu futebol. Também porque você nunca fugiu da responsa. Lembro quando o Timão perdia e você dizia que tinham que cobrar de você, não dos outros, porque você era o mais velho, o mais rodado, era a estrela, então tinha mais obrigação. Outro dia fui na igreja e o pastor falou de ser uma coluna, pilar seguro, forte, em que as pessoas podem se escorar quando o mundo ao redor estiver desabando. Achei que era pra mim, sabe? Até me emocionei. Porque todo corintiano sabe disso aí: mais feio que perder é perder sem correr pelo time. Então já te adianto meu agradecimento, parceiro: muito obrigado, vai curíntia, é nóis.

Agora só pra encerrar essa parada da minha não-carreira de jogador e voltar pro meu destino, quero te contar que estourei o joelho oito vezes. Sete na pancada, porque os cara bate no craque, né meu xará? Porra, véi, como batem, e uma vez foi sozinho, torção. Acabei ficando só de chaveiro mesmo. Se tentasse mais eu tinha sido jogador profissional também. Oportunidade não faltou. Só que moleque é fogo, muita amizade, muito goró, muita desandação. Desnecessário entrar nos detalhes, pois você conhece o tema. E além do mais é privacidade nossa, célôco.

Pensando aqui enquanto te escrevo, me bateu uma curiosidade. Será que você daria um bom chaveiro? Eu acho que sim. É um serviço que mexe com tudo, a mente, as habilidades manuais, faz a gente focar. Quando eu corto uma chave eu despreocupo do resto, não tem futuro nem passado, só o presente. Outra coisa boa de ser chaveiro é que a gente nunca aprende o trabalho totalmente, assim em definitivo, porque vira e mexe lança uma fechadura nova no mercado, uma chave diferente, uma atualização de ferramenta, aí tem que estudar, aprender e tudo vai renovando. E eu gosto de aprender uma coisa que ainda não sei fazer. Igual quando você marcou aquele gol de cabeça contra o Palmeiras, lembra? Você não sabia fazer gol de cabeça, coisa que o Romário, baixinho daquele tamanho sabia, mas aí no Timão você aprendeu, fez e ficou tão feliz que quebrou o alambrado do estádio na comemoração. Saudade de você no Corinthians, fera.

Mas o que mais me deixa feliz nessa profissão de chaveiro é conhecer as pessoas. E ser parecido com você facilita nessa parte. Todo mundo me recebe bem, na paz e na tranquilidade. Penso muito nisso. Assim, ó: ser parecido com você me ajuda a mostrar a minha própria pessoa, abre essa porta, entendeu? Já pensou se eu fosse a cara do Fernandinho Beira-Mar? Pessoal ia ficar mais cabreiro comigo. Mas como Ronaldinho Chaveiro é diferente. Eu posso entrar nas casas, nos escritórios, pra trocar uma fechadura, abrir uma gaveta, e saber das pessoas um pouco mais. Não digo ver o modelo do sofá, a cor das paredes, a raça do cachorrinho, ficar xeretando, não é isso. É poder conversar mesmo. Porque prum cara bacana assim que nem nóis as pessoas oferecem um copo d'água, um cafezinho, bolo. Vira uma família, pensa que não? Acho da hora isso aí.

É por isso que a maioria dos chaveiros trabalha sozinho. Serviço de confiança. Por exemplo se eu mando um ajudante consertar uma fechadura de cinco pinos na casa de um cliente. Aí, por não ter paciência, ou não saber fazer direito, o cara deixa só com três pinos. Sacanagem. Funciona com três pinos? Funciona. É o melhor? Claro que não. Por isso trabalho só eu e Deus mesmo. Você que jogou no Milan com aquele volante grossão, o Gattuso, sabe como é. Dava pra confiar no Gattuso pra limpar uma jogada e fazer um lançamento de 40 metros que te deixasse na cara do gol? Claro que não. O Gattuso era só pra derrubar o adversário, falaí. No serviço de chaveiro é a mesma coisa: melhor não contar com quem não vai entregar o trampo direito. Porque senão depois, apesar de tudo de bom que a gente faz, ajudando, pensando nos outros e tal, aí vem o craque Neto cornetar que a gente tá gordo, que não corre, essas coisas tudo aí que você manja melhor do que eu. E chaveiro não tem o jogo de volta. Se cai na boca do povo por causa de um trabalho malfeito tá eliminado pra sempre, não joga mais nem na segunda divisão, é ou não é?

Agora, tem um lado do serviço que é ruim. É ver a solidão das pessoas aqui nesse Centro de São Paulo. Muita gente morando sozinha. Tem noite que eu fecho a oficina e ando olhando pra cima, imaginando o tanto de solidão dentro desses apartamentos. É apartamento pacarai. E não é que nem lá no Grajaú, ou no Morro Grande, onde eu nasci, que dá o sábado e os tio, os primo, as tia chegam com o isoporzão pro samba, pra assar uma carne. Aqui o pessoal fica muito trancado, não recebe visita de parente. Infelizmente tem um negócio até mais triste: toda hora me chamam pra abrir uma porta trancada, faz muitos dias que o morador não aparece, eu abro e, pô, a pessoa está falecida lá dentro. Quando é síndico ou zelador de prédio que me chama eu vou mais angustiado que goleiro na hora do gol, como diz aquela música, orando pra não ser esse tipo de coisa.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Fenômeno, eu tô aqui com a Lia do meu lado. Ela te manda um abraço e quer saber se você pensa em cobrar direito de imagem por eu seu parecido contigo. Claro que não, né, véi? Vê se pode! Puta cara da hora, Lia, você acha que ia fazer isso com nóis? Amigão, eu até já participei de uns eventinhos como sósia seu. É legal mais ou menos. E a grana é pouca. No começo as pessoas ficam com vergonha de se aproximar e a gente fica lá paradão sem fazer nada. Elas só vêm trocar ideia e tirar foto depois da segunda ou terceira latinha. Me rende trezentinho, coisa assim. Mas com a pandemia deu uma parada.

A Lia se empolgou e quer participar da resenha. Ó as idéia: ela agora me pergunta se eu preferia marcar dois gols em final de Copa igual você ou continuar chaveiro como eu. Molezinha essa, falaí. Claro que continuar chaveiro. Que outro jeito eu ia conhecer ela? Ih, peraí que ela mudou a pergunta: se eu fosse você de verdade ia escolher marcar dois gols em final de Copa ou ter o rendimento de um dia da sua poupança. Carai, aí me pegou. Acho que ia ficar com o rendimento da poupança, pra poder ajudar uma galera bacana que precisa. Mas que precisa mesmo, tipo consertar um telhado, comprar uma moto pra fazer entrega, um carrinho pra fazer Uber, essas coisas. Separava cinquinho pra terminar a nossa casa, que tá faltando azulejar por dentro e rebocar por fora, e com o resto dava uma força pro pessoal: pai, mãe, irmãos, sogra, cunhados, os amigos.

Pra terminar, meu xará, eu queria dizer que você mora no meu coração pra sempre. E força nenhuma, desse mundo ou do outro, vai tirar. Ninguém fala mal de você na minha frente. Não permito. Te defendo de todo o mal, amém. Por exemplo quando passa uns maluco aqui na rua e manda aquela "E aí, Ronaldo, pegando muito travesti ainda?". Difícil essas coisas. Mas fica sossegado, amigão, porque eu corto logo a zoeira, dou espaço não. Digo pro zé ruela: "Pois é, irmão, eu tava doidão aquela vez, não percebi. Essas coisas acontecem". E assunto encerrado.

No mais é isso aí, fera. Fica com Deus.

Atenciosamente, vai Curíntia,

Ronaldinho Chaveiro.

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Imagem: Christian Carvalho Cruz/UOL

Davi de Oliveira, 38 anos, o Ronaldinho Chaveiro

Histórias célebres de gente anônima: este é o espírito do projeto Trombadas. Nasceu sem destino, intenções, interesses ou desejos, nada além de conhecer e ouvir as pessoas que encontro nas ruas. Então eu saio, vou lá, paro — é fundamental parar — e ouço. Depois conto. No fim, é um mergulho. E um reencontro.