Com Cansei de Ser Sexy de volta, o hype ainda faz sentido?
"Ai, eu tenho 35 anos, preguiça de falar de hype." A frase dita por Luísa Matsushita, a Lovefoxxx do Cansei de Ser Sexy, pode causar estranheza. Após viver intensamente sob a aura do "cool" que dominou a década 2000, não há mais ninguém que possa falar com propriedade sobre o assunto.
E o sentimento da vocalista da banda é um só: "Preguiça de tudo isso. Sempre tive".
Para você que é muito mais jovem que as garotas da banda, é necessário explicar: naquela época, a internet era lenta e não havia redes sociais, mas já ajudava a criar cenas, fazendo com que ouvintes ávidos por novidades disputassem à tapa o arquivo de mp3 de bandas novidadeiras, em plataformas de compartilhamento de arquivos, como Napster e AudioGalaxy.
Apesar da preguiça, fato é: o CSS, como a banda ficou conhecida, é quase sinônimo de hype no Brasil. O conjunto galgou espaço na imprensa e nos festivais internacionais de música graças ao carimbo do hype, concedido por jornalistas e formadores de opinião, que serviam de farol para pescar as novidades mais originais num mar nunca antes navegado de novas bandas, que surgiam às dezenas, centenas, de todas as partes do mundo.
Culturada, Lovefoxxx chegou a figurar em 7° lugar na lista dos "artistas mais cool" da revista britânica NME (New Musical Express) — uma das Bíblias de quem queria ficar ligado no próximo grande fenômeno do pop rock. Mas "a brasileira mais estilosa desde Pelé", como a revista a definia em 2007, preferiu, nos últimos anos, sumir desse radar. Ao invés da ferveção, escolheu a tranquilidade de um retiro na Amazônia e uma vida mais simples em Garopaba, em Santa Catarina.
Apenas agora Luísa volta a ser Lovefoxxx. Depois de seis anos longe dos palcos, o Cansei de Ser Sexy se apresenta no Popload Festival, que acontece em São Paulo na sexta-feira (15), e propõe unir antigos (como o CSS e The Raconteurs) a novos candidatos ao hype (como a rapper britânica Little Simz e o indie Boy Pablo). O festival tem transmissão ao vivo pelo UOL.
Acontece que os paulistanos realmente não tinham pretensão alguma em 2003. À exceção do músico Adriano Cintra, as integrantes não sabiam tocar nada e a tímida Lovefoxxx sequer tinha pegado num microfone. "Era uma banda muito mais de zoeira e isso, por si só, já determinava quem amava e quem odiava", observa o jornalista Lucio Ribeiro, criador do Popload Festival. "Falar bem ou mal também ajuda uma banda a subir."
Se faltava talento, a banda compensava com espontaneidade e energia. Na cena underground de São Paulo, bem distante da infinidade de casas noturnas hoje existentes na capital, o burburinho corria rápido entre jornalistas, moderninhos e estilistas. E o hype então chegou.
"A cena que a gente frequentava em São Paulo era muito legal, muito rica, muito misturada e muito divertida. E acho que fizemos parte de tudo aquilo", explica a guitarrista e tecladista Luiza Sá. "O tal 'hype' na época foi algo que achamos engraçado e divertido, e não algo que levamos super a sério."
Após anos no olho do furacão, Lovefoxxx avalia que o termo serviu como uma espécie de proteção para garantir a aura intelectual de quem ouvia aquela tão falada banda. "Era aquela postura 'eu gosto disso, porém é um hype, não levo pra vida, não é sério, é fogo de palha, vai passar'", explica.
A era da hipérbole
Ainda que o termo não fosse popularizado, não faltam cenas e artistas hypados na história. O aparecimento do Nirvana, em 1991, foi um desses momentos que transformou a indústria da música. Mas foi só nos anos 2000, com a acessibilidade inédita a conteúdos em áudio e vídeo pela internet e o surgimento de novas redes de influência, que o hype passou a inflar artistas com adjetivos e rótulos exagerados. Surgiram ali alguns "salvadores do rock" e tantas outras "bandas mais quentes da cidade". O exagero fazia parte. Afinal, no dicionário, hype tem sua raiz na figura de linguagem "hipérbole". "E isso vendia revista", diz Lucio Ribeiro.
"O hype também era uma coisa pessoal. A sua banda era a banda que você descobriu, sobre a qual você falou primeiro ou que você adotou como banda. Tem muita gente que é 'dona' de banda, já percebeu?", observa o jornalista.
Pelos textos que escrevia na Folha de S. Paulo e em seu blog Popload, Ribeiro ficou conhecido como um desses faróis. Muitas das bandas de indie rock que causavam frisson na cena underground ganharam espaço nas suas publicações: The Hives, Bloc Party, Arctic Monkeys. Até hoje ele é lembrado por ser um dos primeiros brasileiros a falar dos roqueiros The Strokes no Brasil. Lucio Ribeiro recebeu a dica de um amigo de Londres, foi atrás e descobriu que o baterista da banda era brasileiro.
"Era como se eu fosse o dono do Strokes. Para o bem e para o mal, minha carreira cresceu com esse hype que eu teria construído. Está tudo certo. Eu tinha um veículo e, quando você fala, a reverberação é maior. Na época, eu era empolgado e falei", explica.
O selo "o Lúcio gosta dessa banda" fazia muita gente gostar (ou odiar) o som de antemão. Não importava, o falatório era garantido. "O hype cria aquela névoa que embala um nome ou uma cena e que você fica com uma vontade inacreditável de consumir. Era o burburinho de cauda longa."
Mas, por mais tempo que o hype pudesse ser sustentar, a vitrine das tendências é sempre cruel: o fenômeno, no fim, dura até a próxima sensação. "É talvez algo mais relacionado com uma semi-fama do que com sucesso, mais fugaz", observa Luiza Sá.
Acredite no hype (nos próximos 5 minutos)
Se nos anos 2000 já era sorte grande conseguir pescar um Strokes no meio de mil bandas, a hiperconexão de hoje multiplicou a oferta para além da realidade.
Em 2019, Lucio Ribeiro se encantou com o som da banda irlandesa de punk rock Fontaines D.C., que teve o disco de estreia incensado pela crítica. Ganhou matérias e posts do jornalista, mas ele mesmo confessa que se esquece que o disco fora lançado apenas em fevereiro.
"É como quando começaram a falar da Rosalía. Você lê, vai no Spotify, ouve, busca no YouTube, já tem imagens bonitas de shows dela. Em um dia você consome e detecta o hype inteiro da Rosalía. Não existe mais esforço, dedicação, e o hype dependia muito disso", explica o jornalista.
Finalmente, chegamos no momento em que não devemos mais acreditar no hype? "Pode acreditar, mas vai passar rápido", diz Ribeiro. O farol também mudou e as redes sociais determinam o que sobe ou desce nessa balança. "Um tuíte pode ser tão poderoso quanto uma manchete", observa.
Para Luiza Sá, o hype criou uma geração de pessoas que querem ser famosas por dar opinião, "simplesmente fazerem cultos de si mesmas e nada além".
Não à toa, ao digitar hype no YouTube, apenas vídeos de youtubers vão aparecer na busca. A maioria desses resultados é voltado para a onda do outfit — como é chamada "a roupa do momento".
"O hype hoje está nesse lugar de pegar um tênis e juntar uma narrativa de marketing, de mercado de luxo, e dar para isso um valor muito alto", observa Rebeca de Moraes, jornalista e consultora de tendências da agência Soledad. "Na música eu vejo muitos artistas, como Travis Scott, que dão nome para o tênis da Nike, e que a garotada vai ficar horas na porta da loja se batendo para comprar para depois revenderem. É um gueto mesmo. Um grupo que tem seus códigos e fala sobre esse outfit dessa forma."
O sentido, no entanto, é o mesmo do que havia nos anos 2000: agregar o argumento de marketing para bombar algo. "O Cansei foi uma banda bastante emblemática, de usar marketing de começo de internet, de rede social, de colocar suas potencialidades nisso. Era todo mundo meio designer. A Lovefoxxx era uma multiartista", observa Rebeca.
Distante do "hype" que a fez viajar o mundo, Sá brinca com o termo hoje. "Agora sou que nem a tia que aprende a nova gíria ou dancinha por último", diz.
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