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Urbanismo militar: como a tecnologia transforma cidades em campos de guerra

Cerca eletrificada em muro que cerca um condomí­nio fechado no interior de São Paulo - Getty Images/iStockphoto
Cerca eletrificada em muro que cerca um condomí­nio fechado no interior de São Paulo Imagem: Getty Images/iStockphoto

Matheus Pichonelli

Colaboração para o TAB

07/02/2020 04h00

Você pode não ter percebido, mas provavelmente atravessou uma zona de guerra ao sair de casa hoje para comprar pão.

Pelo caminho, câmeras de segurança acompanharam o seu trajeto desde o elevador, passando pelo portão elétrico do condomínio, portarias em forma de bunker, automóveis blindados, catracas e uma rede de análise de dados sobre suas rotas e hábitos produzidos por apps de celular e cartões acionados em espaços onde um segurança privado (e armado) se posicionava em posto-chave.

Embora nem sempre seja perceptível, o cenário remete a territórios em conflitos abertos, onde técnicas de controle são usadas em condomínios de alto padrão, com direito a cercas eletrificadas, muros altos, guardas treinados e sistemas de entrada e saída que não permitem ver quem está do lado de dentro. Quanto maior a pobreza no entorno, maior o controle alimentado pelo medo do que vem de fora.

Em cidades como São Paulo, nem mesmo o Carnaval está livre da hipervigilância: em 2020, pela primeira vez, a Polícia Civil tentará identificar entre os foliões criminosos, suspeitos e desaparecidos por meio de um sistema de reconhecimento facial. Um software compara as imagens com um banco de dados com mais de 30 milhões de registros. A tecnologia foi inaugurada pelo governador João Doria no fim de janeiro, e tem capacidade de reconhecer rostos a partir de "frames" (quadros) de vídeo ou fotos.

As estratégias são definidas como o novo "urbanismo militar", e levou o geógrafo urbano britânico Stephen Graham, da Universidade de Newcastle, a analisar suas causas e efeitos no livro "Cidades Sitiadas", publicado em 2011. A obra, que seria lançada no Brasil cinco anos depois pela editora Boitempo, mostrava a militarização do espaço urbano como um fenômeno global intensificado desde o 11 de Setembro de 2001.

Moradores instalam cancela em bairro da zona Sul de São Paulo - Rivaldo Gomes/Folhapress - Rivaldo Gomes/Folhapress
Moradores instalam cancela em bairro da zona Sul de São Paulo
Imagem: Rivaldo Gomes/Folhapress

Essa militarização afeta hoje não só as políticas públicas na área de segurança, mas toda a organização das cidades, onde atualmente vive mais da metade da população do planeta. "Organizar e controlar a cidade é também lidar com a extrema desigualdade, os altos índices de criminalidade, distúrbios sociais e protestos", escreveu o autor.

Os preparativos do Rio de Janeiro para a Olimpíada, por exemplo, transformaram a cidade em uma zona de guerra, com restrição de acesso e uma mobilização até então inédita de soldados e agentes de inteligência, que deixaram como legado inúmeras barreiras e uma violenta gentrificação de bairros antes acessíveis.

Nos países ricos, essa configuração é resultado do que Graham chama de "efeito bumerangue" das experiências de controle das grandes potências em suas colônias e que agora migram como soluções para administração de espaços urbanos em suas próprias cidades.

O GPS, por exemplo, foi usado pela primeira vez na caça a Saddam Hussein na Guerra do Golfo em 1991. Satélites de última geração e drones desenvolvidos para monitorar inimigos e insurgentes na distante Guerra Fria são presença cada vez mais recorrente nos centros urbanos.

Outro símbolo dessa militarização são os jipes e veículos do tipo Sports Utility Vehicle, ou SUV, usados na guerra urbana das Forças Armadas dos EUA e que, nas palavras de Graham, "foram convertidos em veículos civis hiperagressivos, comercializados como a personificação patriótica da Guerra ao Terror".

Não é à toa que, logo na epígrafe do livro, Graham tenha citado uma frase do pesquisador Sultan Barakat, segundo quem, hoje em dia, as guerras são travadas não em trincheiras e campos de batalha, mas em salas de estar, escolas e supermercados. Desta vez, porém, os inimigos são os imigrantes, os islâmicos e, claro, os insatisfeitos manifestantes.

Urbanismo militar, vigilância, punição

Quase dez anos após a primeira edição do livro, os meios de controle se sofisticaram, segundo o doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp e especialista em vigilância e novas tecnologias Alcides Peron.

Autor do livro "American Way of War - Guerra Cirúrgica e o Emprego de Drones Armados em Conflitos Internacionais", Peron, que tem graduação em Relações Internacionais e em Ciências Econômicas, afirma que os dispositivos jurídicos para ampliar o rol de ações militares pelo mundo são exemplos desse fenômeno.

Implantação de controle de acesso a UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) - Edson Silva/Folhapress - Edson Silva/Folhapress
Implantação de controle de acesso a UFSCar (Universidade Federal de São Carlos)
Imagem: Edson Silva/Folhapress

As ações podem ser observadas na repressão, alimentada pela vigilância e pela intromissão, a protestos em Hong Kong, Reino Unido, França, Espanha e Chile. A revolta, segundo ele, tem como base uma economia em frangalhos e uma sociedade capenga desde a grande crise do capital, em 2008.

Outros exemplos dessa sofisticação é a adoção de tecnologias de vigilância, coleta massiva de dados, sistemas preditivos policiais, emprego de drones, participação de policiais em projetos urbanísticos e a criação de "exércitos privados" na oferta de segurança em guaritas e monitoramento eletrônico.

Agentes do Segurança Presente na orla da zona sul do Rio de Janeiro - Divulgação - Divulgação
Agentes do Segurança Presente na orla da zona sul do Rio de Janeiro
Imagem: Divulgação

"Essas empresas privadas administram o espalhamento de câmeras pelas cidades, traçando diretrizes de segurança", diz Peron, que acompanha de perto, em Londres, as discussões sobre a implantação na cidade de um sistema de reconhecimento facial — a ponta de lança desse urbanismo militar.

"Nas cidades mais militarizadas do mundo, como Pequim, você já nota a proliferação desses sistemas, que passam a ser implementados no acesso ao metrô, no banheiro público e até na hora de carregar o cartão de transporte ou fazer compras online. Na China, quem quer ter uma linha telefônica precisa fornecer biometria facial, um serviço integrado pelo Estado que cria bases para políticas de vigilância, controle e bloqueio de circulação. Nessa faceta do urbanismo militar, o rosto passa a ser elemento fundamental para caracterizar grupos."

Profecia autorrealizável

Em 2019, o Comitê Gestor da Internet no Brasil identificou 37 iniciativas de implementação de tecnologias de reconhecimento facial pelo país nas áreas de segurança pública, transporte e controle de fronteiras — 19 delas lançadas entre 2018 a 2019.

Esses sistemas de controle, tema de controvérsia mundo afora, são muitas vezes aceitos porque quase sempre são vendidos como ferramenta para o surgimento de "cidades inteligentes", supostamente eficientes e seguras.

Peron alerta para a ausência de legislação específica para o uso destes recursos, cuja precisão é contestada e podem dar margem a perseguição a determinados grupos. Racismo, em outras palavras.

"No Brasil falamos muito sobre a militarização policial, que é um tema importante, mas pouco se fala dos elementos que, de certa forma, cavam espaço para a atuação maquiada de legalidade e baseada numa suposta legitimidade algorítmica. O emprego dessas tecnologias preditivas sugere uma desconfiança muito grande. Mas como podem prever que um crime virá a acontecer? Quais as probabilidades de crimes acontecerem em determinado horário e região, a partir de estatísticas passadas? Até que ponto essas estatísticas não tornam a análise algorítmica enviesada, uma profecia autorrealizável?", questiona.

A urbe como antro

Atualmente, mais da metade da população global (55%) vive em áreas urbanas (eram 38% até 1976). Com este fenômeno demográfico, escreve Stephen Graham, ascenderam também o chamado antiurbanismo, como se as cidades fossem versões contemporâneas de Sodoma e Gomorra, localidades destruídas na Bíblia em razão da imoralidade. Esse sentimento, segundo o autor, segue "profundamente enraizado no coração da cultura política e tecnológica estadunidense", que inspira modelos de segurança mundo afora.

Agentes de segurança monitoram festa de Réveillon nos arredores da Catedral de São Basílio, em Moscou, na Rússia - Dimitar Dilkoff/AFP - Dimitar Dilkoff/AFP
Agentes de segurança monitoram festa de Réveillon nos arredores da Catedral de São Basílio, em Moscou, na Rússia
Imagem: Dimitar Dilkoff/AFP

A ideia de que nas cidades junta-se tudo o que há de pior no mundo tende a legitimar soluções baseadas na reabilitação de um éthos de disciplina/responsabilidade individual dentro de "comunidades patologizadas, combinadas com políticas militarizadas ou operações francamente militares."

É quase uma declaração de guerra.

Em um debate realizado em 2015, a arquiteta e urbanista da USP Raquel Rolnik citava três cenas para ilustrar a forma como essa ideia de controle de segurança estava desenhada nas configurações do espaço urbano por aqui: a presença das Unidades de Polícia Pacificadoras nas favelas do Rio (que fracassaram e foram substituídas por intervenções recorrentes), a repressão aos rolezinhos nos shoppings; e os confrontos observados em ações de reintegração de posse.

"O cenário da guerra mudou", disse ela. "(A guerra) não é mais entre Estados, num lugar chamado 'campo de guerra', mas uma guerra de baixa intensidade e de permanência cotidiana nas cidades. Em várias cidades", disse.

Um dos efeitos dessa guerra de baixa intensidade é a privatização dos espaços públicos e a arquitetura de segurança que no Brasil prolifera desde os anos 1990, uma época marcada pela crise econômica e o desemprego, através dos chamados "enclaves fortificados", como condomínios, shoppings, prédios comerciais trancados em ruas fechadas e sob controle e monitoramento. O boom de produtos imobiliários com esta arquitetura, afirmou Rolnik, ocorre à medida que a guerra às drogas movimenta o imaginário do perigo que habita nas periferias.

Segundo a pesquisadora Ana Amélia Penido Oliveira, mestre em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança e doutora em Relações Internacionais, as rotinas nas cidades são cada vez mais militarizadas, mas alguns aspectos desse fenômeno sequer são perceptíveis.

"É possível visualizar ao menos cinco dimensões em que a nossa vida militariza-se contínua e constantemente", diz a especialista, que atualmente é bolsista Capes de pós-doutorado no Instituto San Tiago Dantas. A primeira, e mais visível, é a presença física intensiva das forças de segurança nas ruas, o que congrega forças armadas, polícias civis e militares, guardas municipais e "uma enorme rede de segurança privada, postada na porta de supermercados, lojas e esquinas".

Uma segunda dimensão da militarização é a ocupação de cargos no sistema político. "Essa presença cria uma correia na qual os interesses militares são transmitidos para todo o sistema político. No caso brasileiro, nunca antes na nossa história os militares ocuparam tantos cargos no Executivo e Legislativo", diz.

Um terceiro aspecto é a transposição das doutrinas formuladas pelos militares para outros ambientes por meio de políticas governamentais. "A doutrina do inimigo interno orienta as polícias militares. Nesse caso, aumenta a punibilidade dos pobres, a população carcerária e a vigilância eletrônica. São extensões da guerra por outros meios, no interior da cidade. Uma guerra que já é travada há muito tempo e que tem como único resultado, além das mortes nas periferias, a sua própria reprodução enquanto guerra."

A quarta dimensão é o que ela chama de "transferência de valores castrenses para a administração", cujo exemplo é a militarização das escolas com valores de ordem, das ciências exatas, do conservadorismo comportamental e outros. "As famílias, com problemas de naturezas diversas, como escassez de trabalho, qualidade de moradia, tempo de convivência e muito mais, procuram respostas simples para questões complexas, como a utilização de drogas por adolescentes ou a descoberta da sexualidade. Dessa maneira, iludem-se com respostas como as chamadas escolas cívico-militares, com promessas de que, com o corte de cabelo adequado e shorts mais compridos, os adolescentes desenvolverão respeito por si mesmos e pelos demais. É uma ficção. Enquanto isso, o trabalho do professor segue desvalorizado."

O quinto aspecto apontado pela especialista em educação militar é a militarização "de todo e qualquer problema" — mais recentemente, até para orientar as filas do INSS. "Por aqui se combate a pobreza, a dengue, a seca, a corrupção... Tudo como se fosse uma 'questão militar'. Num primeiro momento, pode até parecer mais barato ou mais prático, mas esse pensamento destrói a profissionalização militar, e por sua vez a defesa nacional, enquanto por outro lado mantém o Estado ineficaz e tutelado para apresentar suas respostas."

Penido Oliveira lembra que a busca pela segurança tem como bases construções psicológicas sobre ameaça. "Nem tudo que consideramos ameaça é de fato uma ameaça. A maior parte do que consideramos ameaça, e portanto nos gera medo, não é passível de ser resolvida, como não vem sendo, por meio da militarização da vida, do cotidiano e das cidades."

Peron pondera que a militarização do cotidiano acontece em governos que não necessariamente possuem ministros militares, que é o caso do Brasil. Mas a presença de ex-agentes no Congresso e em cargos públicos, não só na esfera federal, ajuda a entender a mentalidade militarista. "O que parece se tornar uma tendência é o incremento de empresas de segurança rondando serviços públicos. A ideia de militarização não está apenas no aumento da brutalidade ou na ruptura da privacidade, mas na adição de um tipo de tecnologia, fornecida por empresas privadas, que dão provimento à segurança pública."

Além disso, afirma ele, desde o 11 de Setembro os projetos urbanísticos militarizados pautam a administração de espaços, como aeroportos e a construção de checkpoints (postos de controle).

"São pequenos investimentos técnicos sobre o ambiente urbano, como o tracejado de uma rua, a construção de um bloqueio, a organização do fluxo da movimentação das pessoas de forma mais severa. Tudo isso são aspectos do processo de militarização das cidades."