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"Todas as epidemias têm uma dimensão política", diz antropólogo

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

20/04/2020 04h00

Professor aposentado da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Claudio Bertolli Filho considera-se um privilegiado, daqueles que conseguem seguir à risca a quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus sem muito esforço. "Em algum grau, estou sendo como muita gente: cínico", afirma ele. "Estou mantendo o isolamento domiciliar porque tenho condições para isso: pago pessoas que trazem comida, cigarro, tudo o que necessito. Pessoas que se expõem em meu lugar."

Bertolli lembra do livro 'A Peste', obra prima do franco-argelino Albert Camus (1913-1960) para dizer que "a peste revela uma sociedade doente, enferma". "O que significa isso? Uma sociedade cujas dificuldades sociais, mais do que qualquer outra coisa, obrigam uma parte da população a se expor, sair às ruas, a não poder se submeter à quarentena? Enquanto outra — isto é, os grupos sociais privilegiados — acabam tendo possibilidade de fazer esse isolamento sanitário."

Historiador, cientista político, sociólogo -- e antropólogo livre-docente --, Bertolli já estudou a fundo cenários similares aos vividos hoje. Ele é autor de "A Gripe Espanhola em São Paulo, 1918: Epidemia e Sociedade", "História da Saúde Pública no Brasil", "Revolta da Vacina", entre outros livros que abordam episódios sanitários. Fumante inveterado, 64 anos recém-completados, considera-se grupo de risco da Covid-19. "Sou idoso", comenta ele. Vive em Bauru, no interior paulista. Mora só e diz que não tem nenhuma dificuldade em enfrentar assim, em sua "sozinhez", o atual período. "Desde que me aposentei, há dois anos, minha rotina se resume a ficar em casa, ler, escrever, assistir a filmes antigos", conta.

Por vezes, reflete sobre semelhanças e diferenças do momento contemporâneo com tantas outras epidemias vividas pelo homem, estudadas por ele durante sua trajetória acadêmica. Em comum, destaca que o vírus é pior para as classes mais pobres. "Quando se estabelecem regras higiênicas protetivas, como isolamento residencial, ressalta-se a questão das classes sociais: há grupos que não só são convocados para trabalhar, mas que se veem obrigados a se expor para sustentar suas famílias", avalia. "Toda epidemia traz essa questão: os que podem e os que não podem se prevenir, quaisquer sejam as regras."


TAB: O novo coronavírus não causa uma doença que pode ser chamada de democrática?

Claudio Bertolli: Temos, mais do que nunca, a falência do mito de que a pandemia viral é um fenômeno democrático, isto é, que atinge indistintamente os diferentes grupos sociais. Há uma consciência, não plena mas já bem clara, que as pessoas vivem, adoecem, tratam da saúde e falecem em consonância com a classe social na qual estão inseridas. Em 1918 [na época da epidemia da gripe espanhola] usou-se muito o argumento de que os ricos também morreram, morreu até o presidente eleito Rodrigues Alves [em janeiro de 1919]. Mas em minha pesquisa, identifiquei os endereços de residência dos mortos em São Paulo, e a grande maioria, embora tenham morrido na Santa Casa, área central, residia em bairros operários daquele tempo, os bairros da pobreza. Duas, três vezes mais do que nas regiões centrais. Percebemos o mesmo agora. Na Europa, [a Covid-19] mata mais idosos e imigrantes. Nos Estados Unidos, os afro-americanos estão morrendo em grande parcela. Aqui, quando a pandemia já está se disseminando em bairros de periferia das grandes cidades, vamos observando o mesmo fenômeno.

TAB: Nas epidemias antigas, o inimigo era mais desconhecido do ponto de vista científico. Hoje conseguimos rapidamente identificar o vírus, mapear seu genoma, etc. Isto torna as coisas mais fáceis?

CB: Na época da peste negra [no século 14] não havia a menor noção da existência de micróbios. Mesmo quando ocorreu a gripe espanhola, apenas uma parcela da população reconhecia a existência de micróbios como elementos causais de enfermidades. Obviamente que, conhecendo e identificando o responsável, como o novo coronavírus, tudo se torna mais fácil. Mas, ao mesmo tempo, temos uma questão muito séria: desde meados do século 19, com o positivismo, ficamos cada vez mais crentes de que a ciência tem uma resposta imediata para todas as ameaças, no mínimo as biológicas.

Você pega os filmes hollywoodianos e quando a Terra enfrenta alguma ameaça, se os cientistas não resolvem sempre surge um herói solitário, cientista ou não, com a resposta para superar o dilema. O que observamos hoje? Mesmo conhecendo o micróbio, está relativamente difícil estabelecer uma terapêutica plenamente eficiente. Isto é comum na medicina mas, agora, sob a ótica popular, sob a perspectiva do leigo, a situação se torna angustiante.

TAB: Do ponto de vista histórico, quais as semelhanças entre a Covid-19 e outras epidemias?

Bertolli: O processo é o mesmo. Podemos pegar modelos como a peste até hoje não identificada que abateu Atenas no final do século 4 a.C., a peste negra, a gripe espanhola? Primeiro chegam as notícias vagas sobre uma doença que está bem longe, neste caso, na China. É um momento em que não se preocupa muito, tem-se a convicção ou a esperança de que a doença não chegará. Depois, quando ela chega ao território, há o discurso de que "exatamente onde eu estou, não só no ponto geográfico mas também no social, ela não vai chegar" ou "se chegar vai ser só uma gripezinha". É a minimização, que também ocorreu no início da gripe espanhola. O ato seguinte é o medo: algo que ainda está meio oculto mas já está presente, sobretudo frente aos que transitam e podem ser agentes disseminadores da doença. O medo leva à irracionalidade.

TAB: É esse medo — do outro, de ser infectado e da própria ignorância — que alimenta discursos xenófobos neste contexto, por exemplo?

Bertolli: A atual epidemia tem isso, mesmo em vozes oficiais, como o filho do presidente da República dizendo que foram os chineses, que a China teria produzido laboratorialmente essa variante do novo coronavírus para finalmente se impor no mercado como potência hegemônica. É preciso insistir que a doença se originou na China mas poderia ter se originado em qualquer lugar. É preciso combater as fantasias que têm sido criadas, mas ao mesmo tempo, sempre vai existir uma parcela culta da sociedade que acaba aderindo às fantasias, sobretudo por medo.

TAB: Nesse contexto, as fake news têm atrapalhado os esforços do combate à pandemia. Fake news em saúde não parece ser algo novo. Na época da Revolta da Vacina, já se espalhava que os sanitaristas entravam nas casas para assediar mulheres, por exemplo, e outras coisas do tipo. Em sua opinião, o fenômeno está mais agudo agora? Podemos culpar as redes sociais?

Bertolli: Em 1918 também eram muitos boatos e informações errôneas, mas certamente o advento das redes sociais permitiu que essas fake news se disseminassem com velocidade e abrangência inegáveis. Mais que isso, explorando o medo das pessoas — e, muitas vezes, quem explora o faz porque compartilha do mesmo medo. Mas todo momento pandêmico se torna um pouco parecido com um paraíso dos espertalhões, com anúncios de remédios, vitaminas e outras substâncias que nada têm a ver. Em 1918, um centro espírita fazia anúncio nos jornais de uma água fluidificada que protegia contra influenza. Hoje vemos pastores neopentecostais usando programas de TV e redes sociais pra oferecer uma água abençoada com a mesma função. E se fala em "ser vacinado com o sangue de Cristo e, assim, nenhum vírus me atacará". É algo muito parecido. São informações erradas mas, ao mesmo tempo, baseadas em experiências culturais antigas e que estavam, em certo sentido, preservadas, soterradas neste universo cultural. Boatos são corriqueiros em qualquer pandemia.

TAB: E politicamente, como você avalia a polarização da sociedade brasileira, transformada nesta pandemia. O que eram esquerdistas versus bolsonaristas acabou se tornando quarentenistas versus cloroquinistas (não necessariamente sendo estes exatamente representantes dos mesmos grupos). Nem quando a luta é pela vida humana a sociedade brasileira consegue se unir, ter um horizonte comum?

Bertolli: Todas as epidemias têm uma dimensão política. Por exemplo, em 1918, o governo paulista em um primeiro momento desqualificou a chegada da gripe espanhola. O diretor do equivalente à secretaria de Saúde na época falou algo que a epidemia não chegaria a São Paulo, e se chegasse o serviço sanitário estava "plenamente capacitado" para isolar e socorrer as vítimas. Quinze dias depois da chegada da gripe, o serviço sanitário comunicou que não podia fazer nada em favor da população. Muitos vereadores e até alguns médicos fugiram da cidade, foram para o interior para se isolar, e a Câmara apenas assinou rapidamente um decreto que dava plenos poderes ao governo para usar as verbas necessárias para conter a gripe. O governo usou esse dinheiro para comprar caixão. Isso causou uma crítica muito grande às estruturas do Estado e quem acabou socorrendo a população foi a sociedade civil: associações e clubes que criaram hospitais provisórios, cozinhas populares? Jornais, inclusive jornais anarquistas, passaram a tomar as dores da população. E criticaram para caramba o Estado.

Hoje a politização debate as questões da cloroquina, do isolamento horizontal. As acusações, de certa forma, repetem o ocorrido da outra vez: um governo fraco, não interessado no bem comum, com as próprias instituições governamentais ineficientes e incapazes de corresponder às ansiedades populares.

TAB: O roteiro é praticamente o mesmo?
Bertolli:
A política impregna a vida, os atos, as ideias, as crenças e descrenças de qualquer indivíduo. E nesse sentido um governo centrado no desprezo à ciência e aos cientistas acaba criando uma situação em que outros grupos, não necessariamente os lulistas ou petistas, começam a abominá-lo, de uma maneira radical. Veja que o próprio governo brasileiro, como máquina do Estado, está cingido: enquanto o presidente fala coisas como "o pico já passou" ou "é só uma gripezinha", enquanto ele se expõe e expõe os outros ao contágio, uma outra parte do governo, o Ministério da Saúde vai totalmente ao contrário do que diz o presidente [Nota da Reportagem: a entrevista foi dada na quinta-feira pela manhã, em horário anterior à mudança do comando do Ministério da Saúde]. Coisas assim também ocorreram em 1918. Mas eu me pergunto se esse debate, essa politização do papo cloroquina e Bolsonaro? Isso é suficiente? Isso produz resultados em benefício da sociedade ou nossos avós e bisavós estavam muito mais sintonizados com o ser sociedade, com a politização positiva do evento e da crise sanitária? O que a gripe espanhola nos ensinou e nós não aprendemos ou pouco aprendemos: a necessidade da filantropia, dos ricos e dos pobres, em um momento tenso da história brasileira.

TAB: Como antropólogo, qual sua leitura para este presente em que estamos imersos — quarentenados e isolados? O tal futuro distópico dos filmes chegou?

Bertolli: Sem dúvida alguma estamos namorando essa grande distopia. Seja eu, já um idoso, seja o pessoal mais jovem: todos estamos vivendo um tempo estranho. Estranho porque é uma experiência totalmente diferente, que nenhum de nós viveu. Por ser novidade, é uma surpresa. Em um mundo tão dominado pela ciência e pela tecnologia, estamos em um momento de aprendizado. De um lado, vivemos essas novidades, damos respostas, algumas não eficientes nem mesmo racionais. Por outro lado, também acompanhamos a transformação cultural, uma transformação cultural produzida por esse choque. O mundo nos convidava tanto a sair, a consumir diretamente, a fazer 50 mil outras coisas? De repente, há uma reversão radical e temos de ficar isolados, separados de pessoas queridas e tudo o mais. Culturalmente há um choque, e o choque redunda em processos psicológicos de padecimento. Então as pessoas estão começando a ficar extremamente ansiosas. Uns estão comendo muito, outros estão vivendo crises psicológicas? Penso que isso vai repercutir em várias dimensões culturais no período pós-pandêmico.

TAB: Como?

Bertolli: Vamos rever a parcialmente a falsa segurança que todos nutrimos porque estamos protegidos pela ciência. Internamente, a ciência já assumia que era lacunar, que tem dificuldade em responder a tantas e tantas questões do saber. Agora é a hora de popularmente também serem reconhecidas essas limitações. A ciência tem sua liberdade, mas ainda está acorrentada a um espaço de incertezas, de não-saberes. Além disso, vamos ter de lidar com o medo do outro — mesmo que esse outro se pareça comigo em classe social, em etnia, em nível cultural, porque esse outro pode ser portador do germe, pode vir a me matar. Será um momento também para alterar as visões românticas da natureza, aquela ideia de que a natureza é exclusivamente benfazeja. Se ela, a natureza, nos permite a vida e nos permite construir todo um cenário cultural, por outro processos naturais também podem, alguns deles, colocar a vida humana em risco. Acredito que haverá uma certa revisão dessas ideias.

TAB: Você é otimista?
Bertolli:
Dentre as visões sobre o futuro após um momento de crise como o que estamos vivendo, uma vertente é a do pessimismo. Confesso que me integro a ela. Momentos de crise são seguidos de um maior acirramento da exploração do homem. Serão ainda maiores as dificuldades da população mais pobre.