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Fadas insensatas: qual o impacto da síndrome do impostor nas influencers?

Fernanda Soares, ativista e youtuber no Canal das Bee - Arquivo pessoal
Fernanda Soares, ativista e youtuber no Canal das Bee Imagem: Arquivo pessoal

Por Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

26/04/2020 04h00

"Um dia vão descobrir que sou uma farsa. Que, na verdade, não sou especial, nem inteligente e nem talentosa. Que tudo que conquistei foi fruto do acaso, não de suor. Logo, não mereço nenhum destaque, nenhum like. Foi sorte."

Pensamentos assim passam como um turbilhão o tempo todo na mente de milhares de pessoas e indicam um fenômeno real, oficial: a síndrome do impostor, um fenômeno analisado por psicólogos desde a década de 1970. Estima-se que 70% das pessoas já passaram por experiências deste tipo, segundo uma recente revisão bibliográfica do International Journal of Behavioral Science.

O fenômeno não é uma "síndrome" no sentido literal, ou seja, não é um transtorno psiquiátrico, mas uma desordem que pode indicar traços de depressão e ansiedade. Idealizado pelas psicólogas americanas Pauline Clance e Suzanne Imes, em 1978, o conceito tem sido usado por mulheres poderosas como a ex-primeira-dama norte-americana Michelle Obama, a empresária Sheryl Sandberg (diretora de operações do Facebook) e as atrizes Natalie Portman e Emma Watson.

As autoras do estudo definem a síndrome do impostor como uma experiência de sentir-se uma farsa intelectual, independentemente da dimensão de suas conquistas. Ela atinge mais mulheres — homens não estão imunes, mas expectativas que pesam sobre os ombros femininos tendem a agravar o caso. Minorias também são atingidas: entre negros, reportam-se altos níveis de ansiedade e depressão, diz um estudo da Universidade do Texas publicado no Journal of Counseling Psychology.

Outra investigação internacional realizada por três universidades e publicada em dezembro de 2019 no Journal of Vocational Behavior, revelou que fatores sociais impactam mais os indivíduos atingidos pela síndrome do impostor do que a própria performance, habilidade ou competência.

Em outras palavras, não importa o quão bom você seja: você se sente inseguro e pensa que não é bom o bastante, pois não se espera que "alguém como você" conquiste nada, afinal. Se conquistou, foi um lance de sorte — o que desperta um sentimento de culpa por outros tão talentosos não terem tantas oportunidades. No fim, como diz o meme, você queria ter a autoestima do homem hétero branco.

"É o peso histórico do 'ser' mulher, minoria étnica, LGBT", diz a psicóloga Rosangela Sampaio, organizadora do livro "Sem medo do batom vermelho" (Conquista, 2020). "Para figuras públicas, o peso é maior, pois estão expostas ao olhar dos outros e, assim, acreditam que precisam mostrar uma 'vida perfeita'. Na verdade, a perfeição é uma armadilha da nossa mente."

De 'fadas sensatas' a 'canceladas'

Se o fenômeno já é bastante discutido no mercado de trabalho e nas universidades há décadas, entre influenciadores digitais ele é relativamente novo. Em tempos de caça-likes, "fadas sensatas" e vida instagramável, qual é o impacto da síndrome do impostor nos influenciadores?

Em fins de 2017, a youtuber Gabi Oliveira tratou do tema no vídeo "Sou uma farsa?", que recebe comentários até hoje. Em fevereiro de 2019, ela retomou o assunto no podcast Afetos. "Mulheres são mais suscetíveis, mas o recorte racial também é um fator importante", recordou no podcast. "Há uma pressão nos ombros para negros serem melhores, duas vezes melhores. Isso faz a gente entrar em uma neura de que a gente não pode errar nunca. É impossível. Nós só somos humanos."

Para a psiquiatra Ana Paula Carvalho, da Liga da Depressão do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, o julgamento do público — em especial os "haters" — pode acentuar as sensações de ser uma fraude. "Cada um deve escolher o caminho com o que quer trabalhar e estar preparado para as reações. Alguns escolhem abrir suas vidas por completo, mas esquecem que o 'tribunal da internet' é cruel", pondera.

"O público nunca deve esquecer que, por trás de uma tela, de um perfil, está uma pessoa real, com sentimentos, fraquezas, qualidades e defeitos. Vale a máxima: dê aos outros aquilo que gostaria que dessem a você", acrescenta.

Ativa no Instagram, a psicóloga Ellen Moraes Senra sentiu na pele a síndrome do impostor — o que a levou a até questionar sua escolha profissional durante a universidade. "Cheguei a ouvir algumas vezes que 'psicologia é profissão de gente rica e branca'", relata a terapeuta negra. "Minha mãe era doméstica e meu pai era funcionário dos Correios. Eles sempre lutaram pela nossa educação, mas era como se nossas opções fossem limitadas e não tivéssemos chance de chegar a lugares de destaque — não por eles, mas pela nossa sociedade", critica.

"Há influenciadores literalmente impostores: os que recorrem a recursos fraudulentos como compra de seguidores e bots para bombar seus perfis", lembra o jornalista Erisson Rosati, consultor de marketing e professor da Universidade Anhembi-Morumbi e do Centro Universitário Belas Artes. "Entre os influenciadores 'de verdade', mesmo quem discute abertamente fragilidades também está editando um trecho da vida real. Você mostra o que você quer, como você quer, até onde você quer."

O TAB reuniu depoimentos inéditos de influenciadoras que já passaram por situações de síndrome do impostor e seus impactos na internet: a atriz paulista Ana Hikari, uma das protagonistas da série "As Five", que estreia no segundo semestre na Globoplay; a ativista e cineasta lésbica Fernanda Soares, mestre pela Universidade de Ohio (Estados Unidos); a empresária e modelo mineira Michelle Pandora, Mulher da Década do Prêmio Revista Caras de 2019; e a socióloga marxista Sabrina Fernandes, autora de "Sintomas Mórbidos" (Autonomia Literária, 2019).

Sob os holofotes, elas têm um ponto em comum: um dia duvidaram de seu próprio potencial. Hoje, não mais.

Ana Hikari, atriz

"É muito difícil uma produção pensar em uma atriz não-branca para papéis comuns" - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
"É muito difícil uma produção pensar em uma atriz não-branca para papéis comuns"
Imagem: Arquivo pessoal

Sei que meu lugar é bem específico e delicado, como atriz brasileira de ascendência asiática. Sempre tive a sensação de que não seria escolhida para nada, pois é muito difícil uma produção pensar em uma atriz não-branca para papéis comuns. Vi minha maior conquista como uma responsabilidade: fui a primeira protagonista asiática da Globo ["Malhação", temporada de 2017, premiada com o Emmy Internacional] e entendi quão importante seria ser exemplo para muitas meninas que, assim como eu, nunca se sentiram representadas na mídia.

No início, pensava ter sido escolhida por pura sorte, pois estava na Globo fazendo cadastro e uma produtora de elenco me viu pelos estúdios. Nos foi dada uma narrativa de que nosso lugar não era esse: estar na mídia, ser protagonista, ter destaque, capa de revista, referência de beleza etc. Já subestimei meu trabalho e até me questionei se minha imagem de fato cabia nesses espaços. Hoje sei que não foi só questão de sorte. Sinto muito orgulho do que faço, do meu trabalho e da minha trajetória.

Vivemos em um mundo em que se espera sempre uma perfeição dos "ícones". Entendo a cobrança, pois nos tornamos exemplo para milhares de pessoas. Cada vez que faço um tuíte, uma postagem, um story, penso muito. É importante discutir fragilidades para mostrar ao mundo que somos passíveis de erro e que temos inseguranças. Não podemos ser hipócritas e nos mostrar como pessoas perfeitas, prontas e irretocáveis.

Estamos em constante mudança e desconstrução. Faço um esforço diário para questionar o espaço que é dado para pessoas não-brancas e tento levantar essas discussões para que surjam outros talentos. Preciso entender qual é o meu lugar nessa luta, abrir espaço para outras pessoas e entender que preciso ser aliada de quem sofre uma opressão muito mais intensa do que a que eu vivo como amarela no Brasil. Para mim, o importante é que eu não seja a única, que sejamos vários.

Fernanda Soares, ativista e youtuber

"É difícil pontuar um motivo específico para a síndrome do impostor, mas acredito que tem muito a ver com representatividade" - Canal das Bee - Canal das Bee
"É difícil pontuar um motivo específico para a síndrome do impostor, mas acredito que tem muito a ver com representatividade"
Imagem: Canal das Bee

Sempre me vi atrás das câmeras. Em 2014, fui fazer mestrado nos Estados Unidos e, na volta ao Brasil, comecei a me apresentar na frente das câmeras também. Foi bem difícil, mas foi incrível participar das lives da Parada do Orgulho LGBTI+ de 2018, por exemplo. Eu estava tão insegura e me sentia tão fora do lugar lá que até hoje tenho dificuldades para lembrar o que aconteceu, mas percebi que dou conta do recado. Ainda assim, sempre me senti e me sinto insegura.

Em 2018, fizemos a live do Orgulho Lésbico, com o canal Tá Entendida. Sozinhas e correndo atrás de tudo — do roteiro às convidadas. Foi uma transmissão linda! Tatiana Fernandes, Yasmin Campbel e eu choramos muito de alívio por ter conseguido fazer acontecer. Pela primeira vez, me vi orgulhosa não só do trabalho, mas também de quem eu sou. Agora, o novo projeto é um podcast para falar sobre audiovisual e mulheres, o histericaspod.

É difícil pontuar um motivo específico para a síndrome do impostor, mas acredito que tem muito a ver com representatividade. Costumo dizer que temos dois tipos de haters. O primeiro é o que odeia tudo o que nós representamos. O segundo tipo é mais complicado: como discutimos opressões e defendemos minorias, tem uma galera que nos coloca num pedestal de "fada sensata", diz que não temos defeitos e, no primeiro erro (porque o erro vem), já nos tornamos as piores pessoas do mundo. Esse hate é mais difícil de lidar, pois na raiz não é ódio: é decepção por não atender às expectativas de quem gosta da gente. Dá uma travada.

O que tenho aprendido é que, se a gente tiver medo de errar, a gente acaba agindo menos. Prefiro pedir desculpas e me desconstruir a ficar quieta vendo coisas com que não concordo acontecendo. Fomos "cancelados" inúmeras vezes, já nos acusaram de passar pano, de ser radical demais, de ser radical de menos. A real é que não dá pra agradar a todo mundo.

Michelle Pandora, modelo e empresária

"Utilizo meu espaço para ajudar quem não tem destaque, pois um dia era eu quem não tinha nenhuma oportunidade" - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
"Utilizo meu espaço para ajudar quem não tem destaque, pois um dia era eu quem não tinha nenhuma oportunidade"
Imagem: Arquivo pessoal

Sou uma mulher negra, de origem simples e muitos sonhos. Nunca esperei nada cair do céu: batalhei muito e tenho orgulho de ter chegado onde estou, apesar de todas as adversidades. Mas duvidei diversas vezes [de mim]. Era a falta de autoestima em alguns momentos. Se a gente olha demais pra fora, esquecemos de dentro.

Mesmo sendo influencer e dependendo do celular para trabalhar, aconselho que todos tenham um tempo determinado para isso, que não vivam em função de celular e da vida alheia. Desliguem, fiquem off, procurem ter uma vida além disso, pois muitas pessoas não dizem a verdade em suas mídias. A vida não é boa o tempo todo, isso é ilusão. Muitos dizem "você é forte", mas não sabem a metade do que passo. Tenho dias bons e ruins como qualquer um. O que tento fazer é seguir em frente. Choro, mas continuo. Não paro nunca, desistir não é pra mim. Nossa mente é perigosa, temos que cuidar pra não entrar nessas ondas negativas. Repito pra mim: sou foda!

Deixo claro nos meus vídeos que eu erro, que estou acima do peso, que luto com isso, que não sou perfeita — e ainda assim parece que existe uma espécie de cobrança para a perfeição. Não tenho tempo para fazer um personagem. Quer seguir alguém inexistente? Não me siga. Sou real, sou isso aí mesmo. Hoje, tento não ligar para cobranças, não dou bola, silencio mensagens e sigo meu trabalho. Tem muito mais pessoas para ajudar do que para atrapalhar, então me prendo a isso. Minha equipe, aliás, é uma família — e na hora de contratar, por exemplo, dependendo das funções, dou preferência a quem não tem experiência, negros, profissionais "fora do padrão". Incentivo todos eles a investir em seus projetos pessoais junto comigo. De certa forma, utilizo meu espaço para ajudar a quem não tem destaque, pois um dia era eu quem não tinha nenhuma oportunidade. Não esqueço meu passado e sou grata por todos que me auxiliaram e auxiliam nessa trajetória. Espero levantar muitos guerreiros e principalmente guerreiras por aí.

Sabrina Fernandes, socióloga e youtuber

"A melhor forma de lidar com isso é entendendo que, numa sociedade desigual, nossa obrigação é fazer de qualquer conquista vinda de um misto de privilégio e esforço uma conquista mais coletiva" - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
"A melhor forma de lidar com isso é entendendo que, numa sociedade desigual, nossa obrigação é fazer de qualquer conquista vinda de um misto de privilégio e esforço uma conquista mais coletiva"
Imagem: Arquivo pessoal

Síndrome do impostor não é simplesmente o ato de duvidar de si mesmo. É fazer isso cronicamente, sistematicamente, sem ouvir a razão. É o que passei por um ano no mestrado, pensando que estava no lugar errado, que quando acertava era só porque fiz o triplo de trabalho ou que qualquer um poderia fazer, pois não tinha nada de especial na minha produção. Enquanto passava noites em claro estudando, muitos colegas homens diziam que nem precisaram estudar, que o assunto era muito fácil para eles. Isso só aumentava o sentimento de inadequação, até que vi que éramos todos adequados, afinal, fomos aprovados para o mesmo programa de estudo. Seria então que alguns se sentiam adequados demais? Melhores?

Sempre senti a necessidade de me garantir na hora de apresentar um argumento em espaços acadêmicos, por causa da facilidade com que eu ouvia contrapontos rasos questionando o que eu estava dizendo. Na maioria das vezes, esses contrapontos vinham de colegas homens e, apesar de identificar isso como sintoma de práticas machistas, segui internalizando a necessidade de "me garantir". Me sentia confiante em provas e apresentações, mas isso passava por uma série de inseguranças e questionamentos. Aqui, falo mais da minha experiência. Mas é difícil compreender o fenômeno da síndrome do impostor sem entender que ela é relacional, é totalmente enraizada nas comparações que são feitas nesses espaços.

É engraçado, porque precisei criar um canal para poder banalizar um pouco disso. Recebo críticas construtivas, mas também críticas desleais que tentam deslegitimar meu conhecimento todos os dias. Quando um marxista escrevia que eu não era marxista "de verdade", ficava irritada e tentava contra-argumentar — em vão. Hoje, vejo que esse tipo de comentário reflete muito mais sobre o autor do que sobre mim, e acabo rindo. Quando vejo que a insegurança está passando da conta, me lembro das críticas construtivas. Se elas chegam é porque falei algo que merece esse engajamento; elas me fortaleceram.

Quando vejo meus vídeos sendo usados no ensino público ou recebo mensagens de agradecimento de estudantes que acabaram de ser aprovados na faculdade — e vão ser os primeiros de suas famílias a conseguir um diploma —, vejo que a melhor forma de lidar com isso é entendendo que, numa sociedade desigual, nossa obrigação é fazer de qualquer conquista vinda de um misto de privilégio e esforço uma conquista mais coletiva.