Janpí, músico famoso nos anos 1980, tem sua 'Hora do Brasil' no Senegal
Senghor é um sobrenome de peso no oeste da África. É quase como ouvir falar de Windsor na Inglaterra ou dos Kennedy nos Estados Unidos. Isso se deve não só ao patriarca, Leopold Senghor, um dos líderes da independência de vários países africanos, mas também a outros membros da família que foram diplomatas, intelectuais e artistas.
Um deles veio ficar famoso no Brasil. Jean Pierre, um Senghor que viveu no país por mais de vinte anos, fundou o Obina Shok — uma das bandas menos óbvias dos anos 1980, estourou feito foguete —, tocou com Gilberto Gil, Marisa Monte e ainda integrou o Cidade Negra por vários anos, quando a conjunto estava no auge. É um ilustre (quase) desconhecido.
Em seu estúdio, uma sala anexa à casa onde vive em Dakar, Jean Pierre lembra da sua trajetória enquanto brinca com os teclados que o conduziram aos palcos brasileiros. O músico apresenta mensalmente na rádio senegalesa "A Hora do Brasil", primeiro programa de rádio dedicado à música brasileira no país.
Iniciação musical
A vida de Senghor já estava marcada pelo Brasil desde a infância: quem lhe ensinou os primeiros acordes ao piano foi Anoumou Pedro Santos, artista togolês de origem amorô, uma comunidade formada por homens e mulheres que retornaram à África em fins do século 19 para se libertar da escravidão brasileira.
Jean Pierre formou sua primeira banda influenciado pelo Xalam, um dos grupos pioneiros das orquestras afrojazzísticas do Senegal. Ele e amigos acompanhavam o conjunto em ensaios, pegavam dicas, abriam shows. Era um metiê que não agradava à mãe de Jean Pierre. "Foi ela quem disse que eu tinha de sair daqui porque, na cabeça dela, Brasília seria a salvação, e eu queria essa experiência porque o Brasil tinha a música", conta ele, entonando o artigo "a". Seu pai era embaixador no Senegal no Brasil.
Em 1982, Jean Pierre veio. Assistiu a uma pequena África recém-independente ganhar vida às margens do Lago Paranoá. "Todos os finais de semana havia festas com as embaixadas do Togo, Costa do Marfim, Nigéria, Senegal, Gabão, e a gente comia, dançava", lembra. Em uma dessas reuniões, conheceu o guitarrista Roger Keddy, gabonês também filho de diplomatas que já tinha se jogado na música. Juntos, eles fizeram uma banda de baile para animar essas mesmas festas. Estavam lançadas as bases do Obina Shok.
O grupo que ficaria famoso no país inteiro tomou forma entre 1985 e 1986. Do Instituto Rio Branco vieram o brasileiro Sérgio Couto para a percussão e o surinamês Winston Lackin para as baterias. Da UnB (Universidade de Brasília), onde estudavam Roger e Jean Pierre — "primeiro o diploma, depois a música", dizia seu pai —, vieram os também estudantes Maurício Lagos e Hélio Franco, completando a cozinha, e Henrique Hermeto, na guitarra.
O Obina Shok nascia já com a marca de produto juvenil de classe média brasiliense, mas a banda não encontrava paralelo na cena local representada por Legião Urbana ou Plebe Rude. As conexões musicais do grupo davam em tudo que Europa e Estados Unidos reduziriam ao codinome "world music". Era um diálogo Sul-Sul do mundo que triangulava o Atlântico negro entre África, Caribe e Brasil.
Em 1985, não tardou para chegar o convite da produção do Circo Voador: participar de um festival no Parque Lage, no Rio, em outubro. A banda de peso da noite era o Ira!. Jean Pierre e sua turma tocaram músicas autorais, sucessos da rádio e as faixas já certeiras da banda que animava o Plano Piloto. O público dizia querer mais, com aplausos e gritos. A banda voltou dos bastidores e tocou outras próprias e uns tantos covers: "Legalize it!", versões de "Free Nelson Mandela", do grupo britânico Specials, e "Stir it Up", do Bob Marley. Era uma canção emendada na outra, entre uma ovação e mais pedidos de bis. Show de festival não pode ser longo, mas o Obina Shok tocou por três horas seguidas naquela noite. O radialista Mauricio Valladares escreveu anos depois em seu blog que, vez ou outra, encontrava gente que dizia ter ido ao show só para falar que fez parte daquele momento.
"O que aconteceu ali foi mágica", diz Jean Pierre, levantando os braços como se subisse as cortinas do espetáculo.
O racismo de sempre
O Rio de Janeiro daria outras datas memoráveis a Jean Pierre nos anos seguintes — sem a mágica. Certa vez, durante uma virada de ano na década de 1990, Jean Pierre e alguns amigos estavam a caminho de um bar na zona sul do Rio, de carro. Outro veículo fez sinal para que a turma parasse em uma esquina, mas, por medo de uma falsa blitz, seguiram caminho. Foi o que bastou para que policiais saíssem em perseguição pelo grupo. "Eles sacaram as armas e começaram a atirar na gente. Quebraram os faróis traseiros do carro", conta Jean Pierre. "Quando a gente parou, tinha um que dizia: 'Quero matar alguém hoje'."
Baixista, produtor musical e fundador das bandas O Rappa e Digitaldubs, Nelson Meirelles afirma ter presenciado situações parecidas ao lado do amigo senegalês. "Para um cara que vem de um país de pretos, não tem esse negócio. É algo muito violento, principalmente para ele", diz Meirelles.
"Eu tinha uma perspectiva histórica do racismo, da formação brasileira que transformou os negros em escravos. Até que você prove o contrário, vão te ver como inferior, e para ser igual, você tem de ser melhor."
Jean Pierre Senghor, músico senegalês
O Obina Shok surgiu também num sentimento de representação e unidade. A banda universitária levou o título de revelação de 1985 pela revista Bizz depois do show no no Parque Lage. O evento deu carta branca para Obina Shok gravar seu primeiro álbum com a RCA, atual Sony BMG, em 1986, feito com orçamento polpudo. Instrumentistas como Serginho Trombone e Márcio Montarroyos, além de Gilberto Gil e Gal Costa entraram em estúdio com eles. Os dois gravaram o hit do grupo, "Vida", e Gil não largou mão: voltou lá e gravou ainda "Reggae Obina" e "Africaner Brother Bound", uma canção-protesto contra o apartheid sul-africano. O disco saiu no fim de 1986 e junto sai o Obina em turnê pelo país, começando pela Bahia. "O Brasil também começou lá", diz um jovem Jean Pierre à revista Bizz, em 1986. "Na Bahia estão as raízes africanas."
Sucesso efêmero
Em 1987, o Obina rodou o país, encheu casas e fez o caminho estrelado da TV com apresentações no Globo de Ouro, no Fantástico, no Chacrinha e até um especial com a Alcione. E aí o roteiro perde originalidade, pois esse era o início do fim. "A banda começou a perder coesão nessa época", lembra o guitarrista Henrique. O foco nos músicos estrangeiros aumentou e contratos imprecisos foram firmados — ninguém da banda jamais recebeu remuneração por direitos autorais.
No seu estúdio em Dakar, Jean Pierre lembra da época. "A gente se perguntava: 'O que a gente tem de especial?', e nos diziam: 'É um frescor'." O afropop do Obina antecipava tendências musicais do país. Os acordes do hit "Vida" e mesmo a maneira como as cordas se desenham na música, por exemplo, estão presentes em "Alagados" dos Paralamas do Sucesso. O Prêmio Sharp de Música Brasileira de 1988 coroou o Obina como melhor banda regional. Era um troféu que tomava ao revés a proposta. "O Obina Shok chegou muito na frente", explica o produtor Nelson Meirelles. "As pessoas não tinham elementos para avaliar o valor daquilo."
Jampí ou Magái
Ao fim do Obina Shok, em 1989, o tecladista voltou a Brasília já decidido em não largar a música. Mudou-se em seguida para São Carlos, interior de São Paulo, para viver com sua namorada à época. Tocando de bar em bar, Jean Pierre entrou na cena local e logo descolou alguns shows no Rio de Janeiro onde foi redescoberto por Nelson Meirelles. O então produtor do Cidade Negra o convidou a participar do primeiro álbum do grupo, "Lute para viver". O namoro de São Carlos terminou para dar lugar a sua história com a banda. "Esse foi meu casamento mais longo", brinca.
Depois de colaborar no álbum em 1990, o músico fez parte do grupo em dois períodos: de 1992 e 1999 e entre 2002 e 2008. Esse foi o auge do Cidade, com sucessos como "O Erê", "Firmamento", "A Sombra da Maldade" e "Querem Meu Sangue". Jean Pierre teve sua saída definitiva decretada um pouco antes de 2009. Desentendimentos internos, ele desconversa, escolhas impostas.
Para o artista, permanecer no Brasil já não fazia mais sentido. A causa nem era essa última rusga, porque ele poderia tocar com outros músicos — convites não faltavam. Faltava-lhe, na sua avaliação, espaço para crescer individualmente. E maior que isso era sua sensação de devir inerente, um vir-a-ser entre ele e o país fundado por seu tio-avô. Jean Pierre é Senghor, afinal, e em 2010 ele voltou a Dakar.
Saudade do Brasil
Os primeiros cinco anos foram os mais difíceis. Para não sentir saudade de voltar para o Rio ou para Brasília, decidiu nem pisar no outro lado do Atlântico. Aos poucos ele refez sua vida e construiu um estúdio, o Djidjack Music, onde hoje produz artistas locais e faz música também para publicidade.
O retorno ao Brasil veio recentemente. Clima de peregrinação, ele diz, para fazer as pazes que faltaram nos tempos de Obina e apresentar a antiga casa para a esposa. "E eu dizia a ela: 'O Brasil é tudo isso, sim, e ninguém pode tirar isso de mim.'"
Nos cruzamentos das longas avenidas de Dakar, ele ainda vê as tesourinhas de Brasília. Celebra o que chama de intersecção entre emoção e criatividade. Lamenta o país que deixou. "A situação do Brasil, para mim, é surrealista", diz. "Foi surreal escolher democraticamente um cara que tinha anunciado o que está fazendo." A única outra tristeza é por saudade de feijoada.
"No Brasil me chamavam de Jampí ou Magái", lembra ele, em bom português. "Disseram que Jean Pierre era nome de francês." Jean Pierre é, sim, nome mais popular em bairros burgueses de Paris do que em países africanos. Por ali é mais simples encontrar Amadou, Malick ou Samba, escrito talvez por coincidência como o nome do gênero mais brasileiro que há.
Acaso algum, então, que um jovem músico malinense chamado Samba tenha visitado o estúdio de Jean Pierre enquanto ele contava sua história. O novato queria apresentar seu trabalho para o veterano famoso. O sobrenome Senghor lhe soava algo, mas o jovem pouco sabia quem tinha sido Jampí ou Magái. Era melhor não arriscar no tratamento do nobre conhecido — o bom uso dos nomes e pronomes é mister no francês. Samba chamava Jean Pierre de "Monsieur le Maestro".
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