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De cachorro louco a entregador: filmes retratam o corre de motoboys em SP

Cena de "Pandelivery", que será lançado em curta-metragem no fim deste mês - Divulgação
Cena de "Pandelivery", que será lançado em curta-metragem no fim deste mês Imagem: Divulgação

Isabela Mena

Colaboração para o TAB

16/07/2020 04h00

"O cliente quer comida, legal, quentinha, gostosinha. Se você não tem uma comida quentinha, você acaba perdendo o cliente, entendeu? Na cidade de São Paulo não se vive sem motoboy, viu, fera?". Há uma certa ironia no tom de Rogério Ferreira, o Blackgero, mas seu depoimento é real e a quente: ele está na Avenida Doutor Arnaldo, em São Paulo, baú nas costas, indo entregar almoço a um cliente. Quando Blackgero avisa que vai entrar no corredor de carros, passamos a acompanhar de perto o guidão da sua moto, a costura que vai fazendo entre os veículos, o Che Guevara colado no centro do painel.

A cena acima está no documentário "Na Garupa de Deus", do cineasta Rogério Corrêa, lançado em 2002, primeiro filme a retratar o universo dos motoboys na capital paulista. Mas poderia facilmente estar em "Pandelivery - Quantas vidas vale o frete grátis?", documentário em produção de Guimel Salgado e Antonio Matos, que atualiza a realidade da categoria -- em 2020, fala-se também em bikeboys e entregadores -- dentro do contexto da pandemia.

O principal personagem de "Pandelivery", que será lançado em curta-metragem em agosto, e em longa até o fim do ano, é Paulo Lima, 31, morador do Butantã, motoboy em regime CLT entre 2012 e 2015, e entregador de aplicativo desde 2019. Lima é o Paulo Galo, o cara da vídeo-denúncia sobre as más condições de trabalho impostas pelas empresas de aplicativos que viralizou nas redes sociais e em vários veículos de mídia, criador do movimento Entregadores Antifascistas (com quase 30 mil seguidores no Instagram em dois meses), articulador e porta-voz de políticas de rua.

Diárias na quarentena

Parte da ideia de filmar "Pandelivery" surgiu no começo do ano, quando os diretores trabalhavam em um projeto de publicidade na produtora Soalma, da qual Salgado é sócio. "A gente pedia muito delivery de comida e comentei com o Antonio como deveria ser a última entrega do dia de um motoboy, a volta para casa sem saber se vai ter o que comer. Falei: 'Vamos fazer uma ficção sobre isso?'".

Com a chegada da pandemia e os primeiros casos de contágio por aqui, Antonio sugeriu que eles filmassem também histórias reais, misturando realidade e fantasia. "Uma semana depois, rolou a primeira morte no Brasil. Abrimos mão da ficção porque a realidade era o suficiente. E fomos para rua captar imagens", conta Salgado ao TAB.

Estabeleceram um protocolo de saúde, com o uso de máscara N95 e óculos de proteção (ou máscara de acetato), álcool em gel, distanciamento e dispensa do som direto para a gravação. Então, saíram de carro à procura de entregadores nas ruas, que circulavam praticamente sozinhos pela cidade no começo da quarentena. "Tínhamos uma lista gigante de perguntas, que iam mudando ao longo das diárias e nos serviam de bússola para descobrirmos as histórias que poderíamos contar. Mas não tínhamos roteiro", diz Matos.

Foram mais de dois meses de diárias externas intercaladas com períodos indoor nos quais decupavam, ouviam, escreviam, colavam post its e observavam possíveis sintomas de contaminação pelo novo coronavírus — que, felizmente, não surgiram —, até chegarem ao material que dará origem ao curta: duas narrativas centrais, a de um motoboy e de um bikeboy, entremeadas de depoimentos pontuais de outros entregadores, formando um mosaico de realidades e desejos da categoria.

No centro estão Daniel, que perdeu o emprego por causa da pandemia e virou bikeboy com uma bicicleta emprestada, até que sofreu um revés, e o já citado Paulo Galo que, na verdade, surge como ponto de inflexão no projeto. "O Paulo vira um fio condutor no documentário. É um cara altamente politizado, que tem coisas surpreendentes para falar. E sua própria história vai mudando pela possibilidade de contá-la", conta Guimel ao TAB.

Galo diz que a proposta do documentário não é colocar uma lupa sobre sua vida ou a dos outros personagens, mas sobre seu meio de vida, a que se refere como "tormenta". "Os entregadores já viviam um problema que foi intensificado pela pandemia e se tornou um pandemônio. O documentário vai ampliar a visão desse problema, porque as pessoas não enxergam, a gente passa de mochila, de caixa nas costas, mas é como se a gente não existisse".

Está na urgência levantada pela fala de Galo o motivo pelo qual Salgado e Matos resolveram lançar o material primeiro em formato de curta. "Queremos dar visibilidade à vulnerabilidade dos entregadores na pandemia, ajudar a engajar e mobilizar a opinião pública", explica Matos.

Galo bota fé na inciativa, principalmente por se tratar de um documentário. "O filme tem questão artística, de levar poesia para dentro da coisa. Quando as pessoas se sentem atacadas, tendem a se proteger, a dizer 'não quero saber sobre isso'. Mas a arte desarma as pessoas".

"Essas entrevista aí é pra fu*** ou pra ajudar?"

No começo dos anos 2000, além de Rogério Corrêa, dois outros cineastas lançam seus olhares para a relação cada vez mais conflituosa (e dependente) que São Paulo estabelecia com seus motoboys.

Em abril de 2003, estreia "Cachorro Louco", de César Meneghetti, um curta produzido com o prêmio cultural da Petrobras de mídias digitais de até cinco minutos. O diretor o define como uma experimentação da linguagem. "Era uma crítica à rapidez desenfreada, à falta de respeito e dignidade do trabalhador". Para aproveitar as 75 horas de filmagem, Meneghetii produziu um segundo filme, com 55 minutos, chamado "Motoboy" e lançado no ano seguinte. "É menos conhecido, não divulguei muito, mas participou do festival de Turim na época".

Em outubro de 2003, estreia "Motoboys - Vida Loca", de Caito Ortiz, que leva o Prêmio do Público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e torna-se a maior referência sobre o tema nas telas.

Para Ortiz, "Motoboys - Vida Loca" foi uma ferramenta de aprendizado sobre o que significava ter uma cidade movida a motoboys. "Começamos as filmagens em 2001 e, naquela época, só em São Paulo, você tinha a energia de um motoboy colado atrás do outro, como na avenida Rebouças, por exemplo", fala. "Era algo tão novo que lembro de pessoas me perguntando 'mas como você fez aquela cena?'".

Na cena em questão, é noite na Radial Leste, horário de pico, e quem está do outro lado da tela tem a sensação de que a câmera de Ortiz vai atraindo, para perto de si, um número cada vez maior de motoboys. Um deles levanta o corpo da moto, outro faz uma dancinha em ziguezague, um terceiro manda para o diretor: "Essas entrevista aí é pra fu*** ou pra ajudar?". É Marcelo da Silva quem pergunta.

O que o espectador não sabe é que tudo isso aconteceu por acaso. "Tínhamos colocado microfone de lapela de um motoboy que já fazia parte do filme e estávamos acompanhando sua volta para casa, mas a entrevista não estava dando certo. De repente, esses motoboys começam flutuar em volta da gente e um cara que ninguém conhecia levanta o capacete, começa a falar e entra rasgando como um grande personagem", fala o cineasta.

Sócio da Prodigo Films, Ortiz conta que, ao longo das últimas duas décadas, não faltou desejo (nem efemérides) para retomar "Motoboys - Vida Loca". O momento, acredita, chegou. "O universo dos motoboys é assustador porque não andou, não evoluiu. A gente tem a certeza de que precisa voltar a falar sobre esse tema".