Mais lento, 'mandrake' e 100% monetizado: pandemia muda funk de São Paulo
O mundo inteiro parou nos últimos meses em uma realidade que teima em se perpetuar. A música, assim como diversos setores da atividade humana, não passou sem arranhões pela pandemia do novo coronavírus e, num mundo de lives a rodo e shows interrompidos, o funk também mudou. No caso do funk de São Paulo, a crise representou um efeito de catálise em mutações que vinham se desenhando nos últimos anos. Na capital paulista, artistas do gênero desaceleraram as suas músicas, voltaram a atuar como cronistas das vidas e vontades das quebradas e passaram a se apoiar ainda mais na dinâmica econômica do YouTube.
Essa cena é formada por novos MCs como Lipi, Paulin da Capital, Ryan SP, Nathan ZK, Vitão do Savoy, Mãozinha, Menor da ZL e gente com mais anos de carreira, como os MCs PP da VS, Neguinho do Kaxeta e Davi. De importância igual ou até maior, DJs GM, Soneca, Pedro, Dieguinho NVI e W são alguns dos produtores que vem remodelando a batida desse funk.
O tipo do beat é o elemento que mais aproxima esses artistas. A MC Dricka é um bom exemplo. Dos mais importantes nomes do atual funk da capital, ela já acumulava sucessos de baile quando lançou em maio último a faixa "E nós tem um Charme que é Daora". O clipe ultrapassou 50 milhões de acessos no YouTube — mais do que todas as suas composições somadas. A música soa ligeiramente mais lenta do que o típico funk de São Paulo. Isso porque, na capital paulista, a última década do funk foi ritmada essencialmente pelos 130 BPM, as 130 batidas por minuto. O que tem feito sucesso nos meses da pandemia, porém, são canções de levada "devagar", variando entre 80 e 125 BPM.
"A característica do funk sempre foi o batidão de 130 BPM, e no Rio foi de 130 para 150", explica DJ Soneca, produtor de "Sou Assaltante Traficante". "Mas agora o público está gostando de som mais lento, 80, 120 BPM. No som assim, o MC tem mais espaço para cantar, ele consegue cantar com mais entendimento." Autor de músicas como "Mulher Cativante" (46 milhões de visualizações no YouTube), o MC Paulin da Capital concorda com o DJ. "O BPM é lento porque valoriza a melodia, a voz, é algo mais cantado, e não versado."
Novos elementos sonoros
Esse funk de andamento lento não é de todo novo. Um dos maiores sucessos do gênero no Brasil, por exemplo, "Explosão" do MC Kevinho também tem uma levada menos veloz do que aquela do funk típico. O que antes era exceção, porém, tem virado regra nos estúdios de São Paulo. Nas duas maiores produtoras de funk da cidade, a Kondzilla e a GR6, o funk com menos de 130 BPM tem tomado a frente nos lançamentos diários — mantidos durante a pandemia. A nova roupagem corresponde a metade das músicas divulgadas em agosto de 2020 pela Kondzilla, ante a um terço no mesmo mês de 2018. No caso da GR6, os valores são de 67% em 2020, frente a 18% em 2018.
Como o funk é uma música de grande protagonismo rítmico, alterações na velocidade das batidas trazem outros elementos sonoros. No novo funk de SP, a cantoria dos MCs deve vir apoiada pelos arranjos a todo o momento. Há poucos momentos de batidas secas, cheias de lacunas. O som é preenchido por diferentes camadas de percussão. Acordes de pianos e violinos emulados virtualmente dão o toque a cada estrofe, linhas de baixo encorpam as músicas, e ecos e efeitos de reverberação dão um tom etéreo às canções — com referências do rap e do trap. "A gente se baseia muito no rap nacional, no boom bap, no Racionais", diz Soneca. "A gente usa um Felipe Ret e acaba funcionando."
O sucesso dessa forma de funk é tamanho que tem até artista do Rio se encontrando por aí. Nas últimas semanas, a música "Pitbull de Raça" tem feito sucesso entre ouvintes paulistas. Um dos aspectos que a diferencia dos inúmeros sucessos recentes do funk carioca? Em vez de 150 — ou mais, como também tem sido o caso — a música é marcada em 140 BPM. "É um estilo diferente, é mais devagar, mais cantada", diz Biel do Furduncinho, produtor da música ao lado do MC Dukenny e do DJ Sam. "Mas no baile, é uma parada mais acelerada, o ritmo fica mais quente, mais empolgante.
"O detalhe mencionado por Biel do Furduncinho pode ser percebido até por quem não encosta no baile: uma mesma música do MC Poze do Rodo, por exemplo, vem mais lenta no YouTube e mais rápida no SoundCloud — aquela, voltada a quem ouve a música em casa; esta, voltada a DJs em busca de repertório. Essa diferença entre música para festa e música para casa também tem sido crucial para o sucesso do novo funk de São Paulo durante esses muitos dias de isolamento e nenhuma noite de baile. "As pessoas nem ligam muito pra letra na balada, mas em casa a galera ouve mais do que dança", teoriza o DJ Soneca.
A escuta atenta favorece MCs bons de caneta que saibam falar de festa, mas também consigam fugir do hedonismo imediatista. As músicas versam sobre motos potentes como Suzukis e Hornets, carros de luxo do tipo BMW e perfumes caros da marca Carolina Herrera, entre outras. Também têm espaço faixas que contam histórias do dia a dia nas favelas e auto-biografias de superação. Há ainda aquelas que abordam assuntos sensíveis da juventude negra nas periferias, como paternidade na juventude e preconceito. Na música "Diga Não ao Racismo", de MC Nathan ZK e MC DR, há um trecho de um conhecido diálogo do filme "Ó paí ó". "A quarentena ajudou nesse sentido, porque todo mundo está em casa e aí tem um funk que motiva as pessoas", diz o MC Paulin da Capital.
Sinal de uma categorização ainda em curso, a nova onda do funk de São Paulo tem etiquetas fluidas como "consciente", "maloka" e "mandrake". "Mandrake é um moleque maloqueiro que se veste com as roupas da moda, um cara popular que anda de moto e 'chama no grau'", explica o MC Paulin. "Dentro do funk, é um cara que não tem nada, mas que faz o corre e consegue as coisas, um cara desenrolado", completa o DJ Soneca. "Uma mina mandraka, pra mim, é uma mina chave de favela, que fecha com seu parceiro", finaliza a MC Drika.
Mandrake e Maloka
Se esse funk ainda não entra em uma caixinha, existem dois universos nos quais ele transita. Por um lado, há a ideia da malandragem: segundo o antropólogo Ruben Oliven, esse arquétipo surge na música brasileira nos primeiros anos do samba como alguém que logra sucesso nas brechas do sistema capitalista. Adquirindo novos atributos com o passar das décadas, tais como honestidade, honra e força de vontade, esse personagem tem os contornos do mandrake e do maloka: a rapaziada que anda elegante e resolve tretas sem perder a postura de vilão.
Há também o universo da ostentação, elemento evidente em várias letras, agora com novas marcas. A Ecko deu lugar à Lacoste, sai a Quiksilver e entra a Louis Vuitton, troca-se o Citroen pela BMW — a Oakley continua sendo queridinha dos óculos e a Nike não perdeu espaço. Essa retomada oferece contraponto à ideia de que o Funk Ostentação do fim dos anos 2000 seria apenas reflexo de uma suposta bonança da Era Lula. Afinal, em tempos de crise, o funk de São Paulo volta a fazer sua ode a carros, motos e grifes.
O que parece ser uma volta às origens do gênero na capital paulista também reside na produção dos clipes. Sem shows — MCs com agenda cheia podem fazer até trinta apresentações por mês — e sem apoio de grandes marcas ou patrocínios, artistas viram a manutenção do orçamento em risco. O sistema de monetização do YouTube passou a ser a única fonte de renda nesse caso, e formatos de música próprios da plataforma são mais importantes do que nunca. Medleys, sets de DJ, compilações, featurings, enfim, toda música que couber no espaço de um vídeo entra nos canais de funk.
O YouTube não divulga valores e os artistas também são reticentes em revelar cifras de rendimento na plataforma. Segundo a consultoria internacional SoundCharts, o serviço paga aos canais de música ao menos 0,00164 centavos de dólar por visualização.
As margens de lucro aumentam com clipes mais enxutos, algo que a produtora Love Funk mostra dominar. "Hoje em dia, a gente gasta 500 reais para fazer um clipe", diz MC Paulin. "E estamos conseguindo fazer uma grana no YouTube". Ele é uma das estrelas do selo que lança em média trinta músicas por mês e já tem nomes de peso do funk de São Paulo, como MC Mirella, e do brega funk, como Tainá Costa.
Oficialmente fundada em junho de 2019, a Love Funk tem 2,5 milhões de inscritos no YouTube. Em agosto deste ano, a produtora acumulou cerca de 23 milhões de visualizações no seu canal. A GR6, por exemplo, chegou a cerca de 13 milhões de acessos no mesmo mês. Não demorou para que a KondZilla se aliasse à novata, e hoje a Love Funk é parceira comercial da gigante do funk paulista. "A Love Funk pegou o público da rua, e a rua é o funk", afirma MC Paulin em uma chamada telefônica feita com ajuda do viva-voz de dentro de seu Toyota Corolla.
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