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'Bingos da virada' aglomeram idosos sob ar-condicionado e sem janelas

Salão lotado de pessoas jogando bingo no Espaço Real São Judas, zona sul de São Paulo - Rodrigo Bertolotto/UOL
Salão lotado de pessoas jogando bingo no Espaço Real São Judas, zona sul de São Paulo Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB

01/01/2021 04h00

O ritmo hipnótico de uma bolinha caindo a cada cinco segundos e a missão de marcar um dos 90 números da cartela dificultam perceber o perigo do recinto: um salão sem janelas com mais de 300 pessoas sob jatos de ar-condicionado. No Espaço Real São Judas, zona sul de São Paulo, mais da metade dos presentes são mulheres idosas. A única ligação com o ar livre é a porta automática para avenida Jabaquara, onde mais 20 senhoras fazem fila esperando vagar uma cadeira no bingo lotado.

Os presentes por lá usam máscara, há medição de temperatura na entrada e frasco de álcool gel nas mesas, mas o ambiente está longe de ser o mais indicado para uma população de risco na passagem de um ano de pandemia para outro em que a vacinação em massa ainda é uma miragem no Brasil. No lugar de apostar na Mega da Virada e acompanhar o sorteio pela TV, elas preferiram arriscar a sorte e a vida na última semana de 2020.

Proibidos no Brasil desde 2004, os bingos voltaram a partir de 2017 aproveitando uma brecha na lei que permite que organizações beneficentes façam sorteios para arrecadar fundos. Muitas ONGs recém-fundadas, várias apenas de fachada, estão vinculadas a esses estabelecimentos.

Essas casas de apostas se multiplicaram rapidamente em 2019, mas a fiscalização e o isolamento social dos primeiros meses de 2020 fecharam muitas delas — só na avenida São João, centro da cidade, havia duas na mesma calçada, ambas agora com placa de "aluga-se" na fachada.

A reportagem do TAB esteve nesta semana em três delas, abertas na "fase amarela" da quarentena, que permite o funcionamento do comércio em geral — duas funcionaram até o dia 30, uma teve sorteio até às 18h do último dia do ano.

A diversão foi pro espaço

Para quem tem a imagem dos bingos de quermesse, o clima nessas casas, que se classificam como "serviço de entretenimento adulto", é tão divertido como uma grande sala de espera em que as pessoas aguardam por senhas e guichês (só que no "fast forward", afinal, quanto mais veloz, mais viciante).

Um funcionário relata as bolinhas usando uma locução similar aos monótonos anúncios de voo no aeroporto. Nada a ver com o estilo zombeteiro de cantar as pedras, com "dois patinhos na lagoa" (22), "idade de Cristo" (33), "justiça de Goiás" (38) e "um para cima e outro para baixo" (69). Também está bem longe da alegria ensaiada dos sorteios televisivos, tipo Tele Sena, com auditório aos gritos, apresentadores sorridentes e ajudantes de palco com roupas exóticas.

Fora as bolas rodando nas telas, nada evoca o ambiente colorido e barulhento dos cassinos. A luz branca, o piso frio, as cadeiras de escritório e as mesas de fórmica (algumas com computadores) compõem uma atmosfera em que seus ocupantes poderiam estar monitorando índices e cotações que mudam constantemente.

Os apostadores ficam muito concentrados para não perder nenhum número saído das telas e do serviço de som. Cada rodada dura no máximo cinco minutos, com intervalo de 30 segundos para anunciar o próximo sorteio e distribuir as cartelas. A tensão só extravasa quando alguém grita "linha!" ou "bingo!", seguido por um resmungo coletivo dos que perderam. A verificação digital da cartela é rápida, e um totem com o tipo do prêmio é colocado sobre a mesa para a posterior bonificação.

cartelas de bingo sp - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Cartelas de bingo de várias casas de apostas abertas em São Paulo durante o fim de ano
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

"Eu sou bingueira velha. Fiquei sem jogar nesses dias da fase vermelha [nos dias 25, 26 e 27 de dezembro, o comércio em geral foi obrigado a fechar], mas eu estou aqui sempre", diz a aposentada Maria de Lourdes Souza, 63, após ganhar R$ 50 por completar primeiro uma linha horizontal no Espaço Morato, na Vila Sônia, zona oeste de São Paulo.

Ela comprou a cartela por R$ 2 e comemorou trocando sorrisos com suas companheiras de mesa, duas empregadas domésticas filipinas de folga. A vitória durou pouco, afinal, o próximo sorteio já estava para começar.

De prancheta na mão, as fumantes correm para o estacionamento e acompanham apreensivas a rodada seguinte pelo vão da porta, afinal, o intervalo é tão curto que não dura um cigarro.

Na década de 1990, os bingos ostentavam fachadas cenográficas, com uma arquitetura só comparável à dos buffets infantis e motéis temáticos. Considerado à época o maior da América Latina, o bingo Imperatriz e sua decoração de inspiração africana permaneceu quase um década em ruínas à beira da avenida 23 de Maio, e a estátua de 20 metros de uma negra erguida ali acabou em pedaços — e agora há no lugar uma concessionária de carros.

Os bingos atuais são bem mais discretos. Para quem passa na rua, os vidros fumês escondem a jogatina. E, pelo nome no exterior, o prédio mais aparenta ser salão de eventos (quase todos são chamados de "espaços"). Na rua Joaquim Floriano, por exemplo, o mesmo endereço onde estava sediado o Bingo Itaim é hoje o Espaço Real Itaim — no meio tempo, o prédio foi um supermercado. A construção do Bingo Planalto ficou fechada anos e anos até reabrir em 2019, como Espaço Real São Judas, esperando um flashback dos anos 90.

As leis e as trapaças

No intervalo dos sorteios, o telão do Espaço Morato exibe a mensagem "aguardem" sobre uma foto do calçadão do Rio. As caixas de som tocam trechos das saudosistas "The Rhythm of the Night" e "What is Love (Baby Don`t Hurt Me)", sucessos do eurodance no longínquo 1993, coincidentemente o ano em que foram legalizadas as casas de bingo no Brasil, com a promulgação da Lei Zico.

O craque flamenguista foi secretário de Esportes do governo de Fernando Collor e formulou uma legislação de renovação esportiva que, entre outros pontos, criou o filão, destinando 7% da arrecadação para as federações olímpicas. As irregularidades eram tantas que já em 1995 foi criada uma CPI na Câmara Federal para investigá-las.

fumantes no bingo - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Pelo vão da porta, fumantes seguem sorteio de bingo no estacionamento do Espaço Morato
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Em 1998, surgiu a Lei Pelé, batizada com o nome do ídolo santista que ocupava a mesma pasta no governo de outro Fernando (Henrique Cardoso). As denúncias de desvio e falta de fiscalização continuaram e levaram a queda em 2000 do sucessor de Pelé no ministério, Rafael Greca, atual prefeito de Curitiba.

Os bingos agitaram também o governo Lula. O primeiro escândalo da gestão petista foi o vazamento das conversas de Waldomiro Diniz, assessor de José Dirceu na Casa Civil, com o "empresário zoológico" Carlinhos Cachoeira, ligado tanto ao jogo do bicho como a casas de apostas. Uma nova CPI foi criada, e o presidente, para tentar se livrar da batata quente, assinou em 20 de fevereiro de 2004 medida provisória que proibia o funcionamento de qualquer casa de jogos de azar.

Os globos e bolinhas numeradas pararam por dez anos até que o Marco Regulatório das Organizações Sociais (lei 13.1019/2014) criou a possibilidade que entidades sem fins lucrativos promovessem sorteios para conseguir recursos para sua manutenção. Era o necessário para os bingueiros saírem da clandestinidade e para surgir um novo modelo de negócios, trocando as antigas entidades esportivas por ONGs associadas aos proprietários.

O feijão e a sorte

Nos bingos de igreja ou escola, cada pessoa recebia uma única cartela, e os números cantados eram marcados com feijão. A relação do jogo com o grão vem de longe. Apesar do passatempo ter antecedentes na Itália do século 16, onde era chamada de lotto, sua versão recente foi criada por Edwin S. Lowe em 1929, depois de descobrir a recreação no carnaval da Georgia, sul dos EUA. Lá, a brincadeira era chamada de beano, porque os competidores usavam também feijões (beans, em inglês).

Reza a lenda que uma das amigas de Lowe se confundiu após vencer uma rodada e gritou "bingo!" em um dos testes antes da fabricação industrial do brinquedo. O nome pegou. O sucesso foi tamanho durante a Grande Depressão norte-americana da década de 1930 que calcula-se que 10 mil sorteios públicos aconteciam por semana no país.

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Frequentadores fazem fila na calçada para entrar e jogar bingo no Espaço Real São Judas, zona sul de São Paulo
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

As cartelas, indo do 1 ao 75, tinham 24 quadrados, com cinco fileiras, cinco colunas e o quadrado do meio vazado. Já a cartela usada atualmente foi criada na Espanha em 1977. Vai até o número 90, e o papel distribuído, na verdade, reúne seis cartelas de 15 algarismos. Ou seja, quem aposta está constantemente marcando. Esse modelo evita que haja muitos vencedores simultâneos, o que obrigaria a casa a desembolsar mais.

"Bingo!", berrou uma senhora japonesa no Mansão Santana, bem ao lado do terminal de ônibus do bairro da zona norte de São Paulo. Foi a única casa de apostas visitada pela reportagem do TAB que não media a temperatura dos frequentadores.

Cercada por sacolas de supermercado, ela chamou a atendente, que confirmou a vitória. Ela ganhou R$ 200 e aproveitou a bolada para pedir uma porção de batata frita e um suco de laranja. Embananada entre os números e os pedidos, ela seguiu jogando e talvez gastando tudo que ganhou.

Mesma sorte não teve Deise Campos, que esperou meia-hora na frente do Espaço Real Itaim, sem saber que o local estava de recesso pelas festas de fim de ano. Frustrada, ela foi para a loteria vizinha, decorada com uma faixa propagandeando que de lá "saiu o prêmio da Mega da Virada de 2018". "Já tinha apostado. Mas estava com uns números na cabeça e decidiu apostar mais. Se ganhar os R$ 300 milhões, não jogo mais na vida", promete Deise, mas ela sabe que é difícil sair desses círculos viciosos de bolas, globos e cifras tão redondas quanto improváveis — e o mundo e os números seguem girando na próxima semana.