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Por que 'identidade' se tornou palavra-chave para entender o BBB e o Brasil

BBB 21: Karol Conká conversa com Lumena - Reprodução/ Globoplay
BBB 21: Karol Conká conversa com Lumena Imagem: Reprodução/ Globoplay

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

26/02/2021 04h00

A hashtag #ForaKarol subiu como um foguete aos trending topics no domingo (21) no Twitter. Já que era pra tombar, ela tombou: Karol Conká, a rapper negra que se tornou persona non grata e foi eliminada com 99.17% dos votos do público do Big Brother Brasil, estrelou muitos dos "melhores momentos" de controvérsia desta edição do reality show da Globo -- marcado agora por discussões sobre militância e militagem, com um léxico lumenístico próprio e um dilema de quem-cancela-quem nas distorções das chamadas "pautas identitárias".

"Esse BBB se tornou um laboratório a céu aberto da fragmentação dessa esquerda identitária que não tem um modelo de sociedade, que é dividida em tribos e que não concilia o discurso da diferença com o da igualdade", definiu o filósofo Wilson Gomes, professor da Ufba (Universidade Federal da Bahia), à BBC News Brasil.

Um dos argumentos do autor é que a identificação dos integrantes com uma minoria vem sendo utilizada como um tipo de salvo-conduto para atitudes discriminatórias dentro e fora dos estúdios de TV. Identitário, assim, se tornou palavra-chave para compreender o caldo de Brasil dentro desse laboratório social, protagonizado por um recorde de participantes não-brancos e não-heterossexuais. Mas o que quer dizer identitário?

Primeiro, o que é identidade? Substantivo feminino, diz o dicionário: 1. Qualidade do que é idêntico; 2. Conjunto de características que distinguem uma pessoa ou uma coisa e por meio das quais é possível individualizá-la. O verbete já foi teorizado em diferentes campos do conhecimento, da antropologia à psicologia social, passando por história, filosofia e sociologia. Na antropologia, identidade pode indicar qual é nosso lugar diante do mundo e o que nos diferencia dos outros (a alteridade). Na sociologia, pode se referir ao compartilhamento de ideias e ideais de um determinado grupo. "Identidade não é um conceito único, é um fenômeno humano, muito complexo, abordado por diversas disciplinas e autores. É preciso uma 'frente ampla' interdisciplinar para entender essa palavra que extrapola a teoria e se faz presente na política e no dia a dia", pondera a socióloga Marília Moschkovich, pesquisadora de pós-doutorado no Departamento de Antropologia da USP (Universidade de São Paulo). Apesar das diferentes definições, perspectivas e tradições teóricas, é certo dizer que identidade não é uma essência, um alecrim dourado do campo que nasceu no campo sem ser semeado. É, na verdade, uma construção histórica e social.

O que nos define. "Identidade não é modelada ao bel-prazer de quem quer que seja. Não é fixo. É um processo, que envolve um eterno caminhar entre indivíduo e coletivo, sujeito e sociedade", diz Moschkovich. Entram aí os chamados "marcadores sociais da diferença", como classe, gênero e raça. Você pode se identificar como uma mulher rica, branca e bissexual - o que em tese a distinguiria, por exemplo, de um homem pobre, negro e gay. Entretanto, esses marcadores implicam diferentes relações de reconhecimento no cotidiano, já que pesam pressões sobre os ombros de mulheres (machismo), de pessoas negras (racismo) e de pessoas LBGTQIA+ (fobias contra todas e/ou cada letra). No Brasil, podem pesar inclusive para definir o destino de quem vive ou quem morre. Entra aí também a chamada "interseccionalidade", isto é, a intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação.

Longe de ser uma olimpíada de opressões. Esses marcadores indicam que, muitas vezes, as etiquetas se embaralham, se cruzam e se confrontam. Quer dizer, a qual(is) grupo(s) pertenço, como vejo e sou visto dentro desses grupos e como esses grupos se veem e são vistos dentro do mundo. "Ser branca, ser bi, ter corpo X, Y ou Z, lido como cisgênero, tem a ver com os significados sociais de um processo político e histórico, muito mais do que com a biologia ou a construção subjetiva." Em outras palavras, tem a ver com como nós nos vemos e, ao mesmo tempo, como os outros nos veem. Uma das manifestações de transfobia, por exemplo, é não reconhecer a identidade de mulheres trans como mulheres. Deslegitimá-las ou dizer diretamente que elas "não existem" é negar sua existência, isto é, renegá-las à inexistência. Daí a importância de movimentos que defendem direitos mais básicos das minorias, inclusive sua própria existência.

Dizia Sartre. Mas se minha identidade é definida diante de mim, do mundo e dos outros, é de imaginar que haja atritos entre essas esferas. O diabo é que o inferno são os outros, como dizia na década de 1940 o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). Já nas últimas décadas, pautas identitárias passaram a ocupar diferentes dimensões o debate público, mobilizando discussões, políticas sociais e reivindicações de direitos na arena política, considera o sociólogo Serge Katembera, pesquisador de doutorado no Departamento de Sociologia da UFPB (Universidade Federal da Paraíba). "Ao mesmo tempo, tivemos as viradas epistemológicas [dentro das universidades], principalmente impulsionadas pelo movimento feminista e negro."

Se tudo é política, toda política é identitária. Mas se um indivíduo reivindica para si a última palavra (o lacre) de qualquer discussão por sua identidade e seu lugar de fala, não estaríamos mais no terreno da identidade, mas da performance. "Lugar de fala não é para impedir o debate, não é um argumento de autoridade para determinar quem esteja certo e não é para definir identidades únicas. Atentar para as experiências vividas que informam a fala é questionar hierarquias de discurso e fluir diálogo. Deveria, ao menos", escreveu o acadêmico Thiago Amparo, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas), na Folha.

Eu e minha militância. "É muito importante diferenciar, de um lado, as reivindicações legítimas de minorias e as pautas identitárias; e de outro, certas práticas identitaristas, que revelam um tipo de apaixonamento da pessoa em torno da própria identidade, um apego egóico e individualista em busca de reconhecimento dos outros, muitas vezes se esquecendo da construção coletiva, da busca por direitos. É o terreno onde o 'eu' vale mais que o 'nós'", critica Moschkovich. Isso porque identidade implica pensar "eu e minha circunstância", frase famosa do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955). Ou, em tempos de Lumena Aleluia, "eu e minha militância." Foi nesse contexto que se forjou a expressão "identitarismo" para criticar as pautas identitárias. Uma definição negativa que, como critica Katembera, tenta deslegitimar as causas "e carrega uma série de preconceitos" sobre a eficácia da militância e suas consequências nas lutas políticas. "Críticos das pautas identitárias chamam de 'identitarismo' essas lutas, dizem que elas não unificariam, mas dividiriam os grupos políticos, de esquerda especialmente, entre brancos e negros, homens e mulheres e assim por diante." Crítica esta que não faz muito sentido, visto que quando se reivindica direitos iguais, igualdade é o mínimo denominador comum.

Sequestro de causa. Personalidades vêm sendo criticadas ao longo da atual temporada do Big Brother Brasil por muitas vezes puxarem para si o papel de porta-voz de movimentos que não se identificaram com suas condutas individuais, como quem sequestra causas dentro da casa "mais vigiada" do Brasil. Talvez este seja um dos espelhos mais vibrantes para se refletir a diferença entre identidade e performance, pautas identitárias e identitarismo e o eterno enfrentamento entre o eu, o mundo "lá fora" e os outros. Mas, como se diz no jargão dos realities, uma hora a máscara cai.