Acampados em Brasília, indígenas de 40 etnias protestam contra PL 490
Era sábado quando Juracilda, da etnia Kaingang, entrou na van com 11 pessoas. Viajou da aldeia próxima a Bauru, no interior de São Paulo, rumo a Brasília para atender a um chamado. Desde 15 de maio, ela decidiu botar a vida a serviço de uma missão: sensibilizar a sociedade sobre o PL 490, que está no Congresso Nacional. Se aprovada, a lei vai mudar radicalmente as regras para demarcações de terras indígenas no Brasil.
A mala de Juracilda era pequena. Não pôde levar a filha, de seis anos, nem o marido. Ao chegar, tinha na mão apenas dois cobertores. Um forrou o chão, o outro protegeu Juracilda do frio cortante da madrugada brasiliense. Mesmo assim, sua primeira noite na capital federal não foi tranquila. Teve de dialogar com os policiais para que não a expulsassem, nem ela nem às outras 71 pessoas que chegaram na frente, unidas no movimento Levante para Terra.
Estrategicamente posicionados, os indígenas escolheram o gramado que demarca o Teatro Nacional dos Ministérios. O local tem como vizinha a ANM (Agência Nacional de Mineração), um dos alvos da manifestação para as 40 etnias que se acomodaram ali.
Na primeira vez em que a reportagem do TAB visitou o local, um grupo estava reunido na entrada do órgão com megafone, faixas que identificavam as etnias e palavras de repúdio, como "A Floresta derruba Bolsonaro" e "Não ao PL 490". Mais acima, acontecia um ritual da etnia Krikati, oriunda do Maranhão. Organizados em duas fileiras, cada um com um cocar de palha de milho, amarrado na hora, iniciaram o som ritmado dos maracás e faziam círculos como se estivessem dançando ao redor de uma fogueira.
Trajando um colete vermelho da CUT, um cocar de penas exuberante azul-escuro, máscara descartável e, em volta do pescoço, um barbante com um pedaço de papelão escrito "APOIO Levante", Juracilda explica, em português, o motivo de estarem ali.
"Se a gente não lutar pelo nosso direito, nossos filhos não terão futuro." Com uma expressão cansada no rosto, prossegue: "Estamos aqui para lutar espiritualmente, junto com os que já se foram [refere-se às mortes recentes de covid-19 nas aldeias]. Se a gente ficar na aldeia, sentada, não vamos conseguir nada".
A barraca azul, com detalhes em amarelo neon, coberta por uma lona preta de plástico, está fincada ao lado da tenda de reuniões. Esse é o novo lar de Juracilda. Após a primeira noite improvisada, Isabel Tukano, líder das mulheres, conseguiu a liberação do espaço e a doação de uma infraestrutura simples para atender às necessidades básicas dos mobilizados.
A grande aldeia
Somados, há entre 900 e 1.100 pessoas no gramado, cerca de 40 etnias de todo o Brasil. A organização para acomodá-los é enorme e cansativa. Juracilda é uma das pessoas responsáveis por isso, junto com mais alguns homens e mulheres que se dividem entre receber as pessoas, passar as regras, verificar o roteiro do dia, a alimentação, a manutenção do acampamento.
Ela mostrou ao TAB desde as estruturas de banheiro químico até o Centro Médico improvisado que conseguiram, por iniciativa dos alunos do Hospital Universitário de Brasília e outras entidades. "Isso, tira os lixos e chama alguém para te ajudar a carregar as sacolas até lá na frente", diz Juracilda, apontando para a rua do Eixo Monumental. Há um mês, esta sem sido sua rotina.
Entre barbantes, bambus e lonas, a forma de identificação criada por eles é anotar o nome do povo e da aldeia em uma cartolina com pincel atômico e pendurar na entrada das barracas.
Ao anoitecer, a fumaça sobe em Brasília. Fogueiras são acesas entre bancos de concreto e no gramado para aquecer, principalmente entre as etnias vindas do Norte e Nordeste, desacostumadas a tanto frio.
Daniela Barros, da aldeia Gavião, a 17 km da cidade de Amarantes, no Maranhão, não saía do celular. A jovem indígena estava sentada em uma das cadeiras brancas de plástico, descansando na sombra da tenda e aguardando o aparelho carregar na extensão em que carregam, simultaneamente, mais de 10 celulares. O único ponto de energia é ali, no palco e na cozinha.
Daniela tem pressa em ficar online. Conversa com sua mãe o tempo todo, passa todas as informações do Levante e transmite lives para a aldeia acompanhar.
A menina de 20 anos está em sua segunda mobilização em Brasília. Foi indicada pela mãe, que é Coordenadora das Mulheres Indígenas do Maranhão, para aprender mais sobre a luta e se engajar.
"Os madeireiros entram na nossa reserva. A gente falar para eles que não, mas não tem jeito. Tentamos ter diálogo. Só que como o Bolsonaro dá muita autoridade a eles, eles não querem saber de nada, não escutam a gente. Entram mesmo sem permissão, caçam, às vezes até querem possuir as aldeias."
Apesar de crescer ouvindo a mãe falar de mobilização, despertou para a realidade há pouco tempo. Ela não queria vir a Brasília, mas deu-se a chance de ir ver. Foram quase dois dias de viagem no ônibus com outras 27 pessoas.
Ela não se arrepende, mas tem sido uma adaptação. Quando chegou, teve de tomar banho em um banheiro ainda sem porta. É acostumada a almoçar cedo, e lá tem feito as refeições às 13h. Mas foca nos aprendizados. "Ouço e conheço pessoas de outros lugares. Nunca eu ia ter a oportunidade de estar em um lugar com todos os povos, vendo as tradições de cada um, como são organizados."
Ver e aprender
Enquanto alguns fazem seus rituais de luto ou de celebração, outros estendem panos no chão ou montam tendas para exporem artesanato. Brincos, colares, cocares, cachimbos, cestos, entre outros itens, são a forma de ganharem algum dinheiro para o sustento. Na feira ao ar livre, indígenas são ao mesmo tempo diplomatas de suas crenças e vivências e vendedores e compradores das mercadorias de outros.
Há quase nenhum branco circulando ali. Pedestres passam ao largo, e não param para conversar — usam o acampamento como passagem. A mesma coisa acontece com quem aparece por lá para fazer doações.
"Vem muita ajuda de branco, mas ele chega e não quer muito contato, não quer conhecer a história, deixa as coisas e vai embora." É o que explica Ana Flávia Brito, 26, voluntária e apoiadora de doações.
"Este é o momento em que as pessoas deveriam estar aprendendo sobre o Brasil", desabafa a moça, que se desdobra entre o trabalho remunerado e o voluntário.
Recepção sem diálogo
A organização dos atos no acampamento funciona assim: as lideranças ficam à frente, e os homens são responsáveis pela segurança das mulheres. Quem não tem filhos, fica no meio; quem é mãe é realocada para trás, na última fileira — em geral essas mulheres estão acompanhadas das crianças.
Juracilda explica que, ao idealizarem o chamado, as lideranças foram bem claras: viriam a Brasília só guerreiros e guerreiras, e cada etnia poderia enviar de oito a 10 pessoas. Só que as mulheres não querem deixar os maridos guerrearem sozinhos, porque já é costume [estarem juntos], aí vêm e trazem o filho.
Eles acordam cedo. O café da manhã é servido a partir das 7h. Em dias de manifestação, atentam para as pinturas feitas pelo corpo. Com um pedaço de palha fino e tintura de jenipapo e urucum, fazem desenhos uns nos outros para chamar mais força e proteção para si. Munem-se de seus arcos e flechas, pedem proteção e seguem para o local marcado no dia.
O primeiro confronto aconteceu em 16 de junho, na frente do prédio da Funai. O noticiário trouxe as imagens dos índios atirando flechas e a polícia reagindo com balas de borracha. No entanto, outros protestos já haviam sido realizados e vinham numa linha pacífica. O resultado da confusão foi o cancelamento das duas reuniões das lideranças indígenas agendadas com o presidente do órgão, Marcelo Xavier, e a lotação do centro médico do acampamento.
No momento em que a polícia novamente confrontou os indígenas, no Anexo IV da Câmara dos Deputados, Ana Flávia ficou horrorizada com a agressividade.
A voluntária quis, mais uma vez, agir. Desceu junto com o grupo para a manifestação. Lá foi surpreendida com bombas de gás lacrimogêneo. Sua reação foi segurar as crianças para que não fossem atingidas. Via as bombas passarem por ela e uma atingiu seu pé. Se Ana não tivesse tirado a criança, seria ela o alvo.
Daniela, mal havia chegado ao anexo, foi atacada. Não teve nem tempo de medir a distância dos policiais quando foi surpreendida com gás e balas de borracha. Daniela é asmática: ao inalar o gás, teve muito medo de não conseguir chegar até seu povo. Sua sorte foi que no meio da confusão eles a viram e chamaram.
"Não pode dar mole!", solta um dos Krikati ao ouvir a história. A expressão vale tanto para a luta, quanto para a rotina no acampamento. Lá dentro, os indígenas só andam acompanhados uns dos outros, em grupos.
No mesmo dia, os últimos manifestantes na frente do anexo subiram até o acampamento em formação, cantando e balançando os maracás, em coro. Os que já estavam lá reagiram com gritos de guerra, em incentivo.
Um rapaz com bermuda jeans, blusa larga de cor cinza, um adereço indígena na cabeça, rosto pintado de urucum e boné de aba reta preto com glitter passou pelo artesanato com um rádio na mão. Foi até o palco, conectou o aparelho e logo o rap do Brô MCs — primeiro grupo de rap indígena do Brasil, das aldeias Jaguapiru e Bororó em Dourados (MS) - ecoou pelo acampamento, fazendo as pessoas se mexerem no flow que a música pedia.
Os grupos devem acompanhar a tramitação do PL e se revezar — alguns voltam para a aldeia, outros chegam para lutar. A liberação pública para usar o espaço da Praça da Cidadania, onde estão acampados, vai até quarta-feira (30), quando haverá nova votação do PL. As lideranças tentam articular algo para conseguirem ficar por mais tempo, sem data definida para sair.
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