'Deus Proverá': proposta para renomear dunas do Abaeté revoltou população
Mãe Jaciara, 54, estava incrédula diante do que dizia ser um novo ataque ao povo de santo. "É extremamente perverso. É racismo ambiental, racismo religioso e intolerância religiosa", lamentou a líder do Ilê Axé Abassá de Ogum, um dos mais importantes terreiros de candomblé da Bahia, fincado no bairro de Itapuã, em Salvador.
A investida a que a ialorixá se referia constava no bojo de dois projetos recém-encampados pelo governo da capital: o primeiro, apresentado pelo prefeito Bruno Reis (DEM), prevê uma ampla urbanização nas dunas do Abaeté, situada em uma APA (Área de Proteção Ambiental). O segundo sugeria batizar o local de "Monte Santo Deus Proverá", como propôs o vereador evangélico Isnard Araújo (PL), ligado à Igreja Universal.
O território, até então intocado, abriga ainda a lagoa do Abaeté, palco de celebrações e ritos originários do candomblé.
"Pra mim, enquanto ialorixá de uma religião que vem sendo tão perseguida, esses dois projetos, sobretudo o de construir dentro de um espaço sagrado, que são as dunas do Abaeté, não contemplam a diversidade. Porque o objetivo é separar e demarcar territórios, e isso não é o papel nem da prefeitura pelo seu estado laico. A laicidade é muito importante", afirmou Mãe Jaciara, que abriu as portas do seu terreiro para o TAB na última sexta-feira (11).
Naquela manhã de calor abafadiço, um auxiliar da mãe de santo recebeu a reportagem sob protocolos impostos pelos atuais tempos pandêmicos. Além de conferir o uso de máscara, ofereceu álcool em gel e aferiu a temperatura dos visitantes.
Por força de compromissos já marcados desde o dia anterior, a ialorixá teria apenas 1h para a entrevista -- o suficiente para externar sua insatisfação.
Ebó coletivo
Na quinta (10), Mãe Jaciara já havia feito coro em um protesto para repudiar ambos os projetos, em ato que reuniu dezenas de outras lideranças de religiões de matrizes africanas, ambientalistas e moradores. Empunhando cartazes e com palavras de ordem, o grupo afirmava nunca ter sido consultado a respeito de eventuais intervenções na região. A manifestação aconteceu pouco depois de o prefeito Bruno Reis (DEM) anunciar detalhes de sua proposta durante uma visita ao bairro.
A previsão é que a urbanização ocorra em uma extensão de 5.654 m², dos quais 1.900 m² seriam de área construída. As obras custarão R$ 5 milhões aos cofres públicos. O projeto também prevê a instalação de uma sede administrativa, sanitários, estacionamento e um núcleo de orientação ambiental com auditório para 50 pessoas. Reis não informou quando as intervenções terão início.
"É fundamental a união de todos. Uma cidade com as características de Salvador é para todos os habitantes. E a prefeitura se preocupa com todos na cidade. Por isso mesmo, somos totalmente contra a intolerância religiosa. Este projeto está de acordo com as regras e as leis ambientais, preservando a natureza, as dunas, atendendo todos os princípios para cuidar e preservar este patrimônio riquíssimo", discursou.
Após a mobilização do povo de santo, o prefeito disse desaprovar a mudança no nome das dunas. Ele chegou a chamar a iniciativa de "fake news". Não recuou, porém, de seu intento de executar as obras no lugar.
Segundo a gestão municipal, o projeto é uma demanda antiga de representantes de diversas correntes religiosas que utilizam o local para cultos e retiros espirituais. A prefeitura estima que 5 mil pessoas estejam ali semanalmente. "O projeto elaborado pela Seinfra (Secretaria Municipal de Infraestrutura e Obras Públicas) visa uma urbanização inédita no local, considerando sobretudo a preservação e valorização ambiental da localidade -- que vem sofrendo com abandono e degradação --, além promover mais conforto e segurança aos visitantes", reiterou em nota enviada ao TAB.
Mãe Jaciara rechaça os argumentos do Executivo municipal. "Não estamos pedindo reparação. Não queremos que se construa nada, e, se fosse construir, poderia ser uma construção neutra. Nem pra evangélico, nem pra povo de religião de matriz africana, nem pra indígena, e sim pra comunidade", afirma.
Projeto cancelado
Procurado pelo TAB, o vereador Isnard Araújo (PL) inicialmente defendeu o texto de sua autoria, mas disse que a ideia era nomear apenas um trecho das dunas do Abaeté — cuja área total é de cerca 12.000 metros quadrados.
"Imaginou-se que eu queria mudar o nome da área toda, mas eu não posso fazer isso. Não compete a minha pessoa, que não tem significância pra isso. Eu só queria colocar nesse local específico, onde pastores já usam. A denominação de monte, aliás, já existe. Com ou sem lei, já é usado desta forma", diz. O vereador faz alusão a uma placa onde se lê "Monte Santo", instalada ao pé de um areal situado às margens da avenida Dorival Caymmi -- baiano que, tal qual o poetinha Vinícius de Moraes, cantou Itapuã em verso e prosa.
Apesar de "simbólica", a peça com menção à passagem bíblica traz a logomarca da prefeitura soteropolitana. Questionado pela reportagem sobre a sinalização, o Executivo municipal respondeu que a denominação "Monte Santo" foi adotada provisoriamente para identificar o local comumente chamado assim pelos praticantes de atividades religiosas, "não sendo nome oficial desse ponto, nem será modificado pela administração municipal".
Embora Isnard afirme sugerir nomear somente um trecho das dunas, a redação do seu projeto não falava em delimitações. "Dispõe sobre a denominação das Dunas da lagoa do Abaeté, localizada na Avenida Dorival Caymmi, no bairro de Itapuã, como 'Monte Santo Deus Proverá'", registrou o texto genérico, datado de 6 de dezembro do ano passado.
Em sua justificativa, o vereador disse que o Abaeté é um local respeitado pelos evangélicos e grupos neopentecostais que o frequentam com a intenção de realizar seus cultos com reverência e temor, não interferindo no seu ecossistema. Quanto ao epíteto "Monte Santo Deus", ele disse que seria uma forma de homenagear cada pessoa que professa sua fé e realiza seus cultos no local.
"O pessoal fica à noite. Não tem ponto de luz, não tem banheiro. Pensando nisso, fizemos a indicação. Jamais passou pela cabeça criar polêmica com a cultura. Não vou bater de frente com as religiões de matriz africana", repetiu o vereador.
Em face de tantos protestos populares, Isnard recuou. Durante pronunciamento na tribuna, ao longo da sessão ordinária desta terça-feira (15), o vereador reafirmou que o PL visava a nomeação de apenas um trecho do espaço, mas que que retrocederia. "Estou colocando para todos aqui que estou retirando o projeto para evitar polêmica com respeito ao nome", justificou.
Ao TAB, a vereadora Maria Marighella (PT) afirmou que o ato de "desterritorializar para controlar" é uma tática de alguns governantes. "A aliança entre a Prefeitura de Salvador, o capital ultraneoliberal e o fundamentalismo religioso quer agora erguer um 'monte santo' no já sagrado Abaeté",disse. Ela destacou que o projeto de urbanização da administração municipal foi proposto por meio de concorrência pública, sem que houvesse possibilidade de discussão e votação no Legislativo.
Lugar encantador
Simara Francisco, 59, escolheu o Abaeté como o primeiro cartão-postal para conhecer em Salvador. Adepta aos preceitos ancestrais, a inspetora escolar do Rio de Janeiro diz não concordar com nenhum tipo de interferência na paisagem à sua volta. "Eu acho que não deve mexer em nada. Tem que continuar assim. Nada contra o cristão, não. Mas eles têm muito contra o povo de santo", opinou ela, enquanto caminhava em direção à beira da lagoa para uma demonstração de sua fé.
"Vim até aqui pra lavar a imagenzinha de Oxum que eu trouxe. Comprei essa imagem lá na Feira de São Joaquim. Estou levando de presente pra uma neta minha. Quero levar benzida pelas águas da lagoa. Que ela dê muita saúde pra minha neta, muito axé e muito êxito na vida dela", exaltou Simara.
Tanto a lagoa quanto as dunas do Abaeté são Área de Proteção Ambiental. "A APA Lagoas e Dunas do Abaeté foi criada e delimitada pelo Decreto Estadual n. 351/1987 justamente para garantir a conservação de remanescentes da restinga, sistema de dunas e lagoas, e culturas associadas, dando ênfase ao desenvolvimento econômico relacionado à atividade turística voltada para o ecoturismo, mas teve sua limitação alterada algumas vezes para atender aos interesses da especulação imobiliária, resultando em redução das áreas de APA e principalmente das áreas ditas não urbanizáveis", afirma a ativista Clara Domingas, mestra em antropologia pela Ufba (Universidade Federal da Bahia).
Ela explica que a área reivindicada pelos evangélicos encontra-se justamente na borda da APA. "Esse golpe vem sendo paulatinamente construído nos últimos anos. Faz tempo que pautamos a existência de uma placa que já instituía o nome 'Monte Santo", pontua a ativista. "Os ataques são históricos, mas os mecanismos democráticos estão cada vez mais frágeis e agora temos um contexto de crescente fascismo, fundamentalismo religioso e organização criminosa articulados", reclama.
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