Como é uma sessão de Cientologia em SP, a religião dos astros de Hollywood
"Como está sua vida?", pergunta o homem com semblante sério e camisa social azul-marinho. No colarinho, uma pequena cruz prateada com oito pontas serve de broche.
Do outro lado da mesa, seguro duas latas de metal, ligadas por um fio a um aparelho preto com formato que lembra uma antiga secretária eletrônica. Um leve formigamento percorre meus braços. Pergunto se é algum tipo de choque. "Está passando uma corrente menor que uma lanterna, seu corpo é a resistência", ele explica, querendo saber como está minha saúde, meu trabalho e família. "O que você gostaria de mudar na sua vida?", diz, enquanto faz anotações com uma caneta dourada numa folha de papel fora do meu campo de visão.
A sala com paredes claras, grandes armários e uma maca lembra um consultório antigo, mas o dispositivo ali na mesa, chamado e-metro, é considerado um artefato religioso, compreendido em sua totalidade apenas por entendidos. Ney Gonçalves, 48, aprendeu a manuseá-lo na Igreja da Cientologia nos Estados Unidos. Ele explica o credo: muitos dos problemas e dores que travam nossas vidas estão na chamada "mente reativa". "É onde estão guardadas todas as cargas negativas que a gente tem na vida", acredita.
Supostamente, o aparelho ajuda a identificar a fonte de todo o sofrimento. Ney aponta para a agulha no visor do aparelho, que faz a medição das energias: cada oscilação tem um significado. E demonstra com um beliscão no meu braço — a agulha dispara para a direita. "Agora pensa nesse beliscão", pede. O medidor oscila levemente para o mesmo lado. "Quanto mais você passar por esse momento de dor, sua carga diminui", exemplifica.
Na sala ao lado, um rapaz de barba, bermuda de tactel e camiseta destoa da vestimenta sóbria dos membros. Lê um livro apoiado num anteparo de metal. É acompanhado à distância por um rapaz de cabelos longos que nos pede silêncio: "Tem gente estudando."
Desde 1994, a Cientologia opera por aqui com as mesmas práticas que conquistaram seguidores famosos, como os atores Tom Cruise e John Travolta, e uma leva de críticos que preferem chamá-los de seita. A busca espiritual dos cientologistas não passa por rituais, mas pela aplicação das "audições" e o estudo com afinco da vasta obra do fundador da doutrina, L. Ron Hubbard (1911-1986).
"Aqui a leitura e a tecnologia nos dizem tudo. Funciona para a Maria, funciona para o Zé", diz Simone Rocha, 52, coordenadora do primeiro espaço da religião no Brasil. O "templo" funciona numa casa discreta, com uma fachada de tijolinhos, no bairro de Mirandópolis, na zona sul de São Paulo. Ali, a imagem de Hubbard é onipresente em livros e fotos.
Diante do sorriso confiante do fundador, imortalizado em uma imagem em preto e branco na sala, Ney resume o objetivo das audições. "No momento em que você não tem mais carga em relação ao seu passado, você pode atingir níveis maiores na sua vida."
Da ficção científica para a autoajuda
O norte-americano L. Ron Hubbard tem um histórico diverso. Filho de um oficial da Marinha, dizia ser um explorador. Antes de fundar sua própria religião, se dedicou a escrever ficção científica — a palavra "cientologia" apareceu pela primeira vez na safra ficcional, num manuscrito intitulado "Excalibur", mas o conceito seria fartamente esmiuçado em 1950 pela ótica das ciências exatas com a publicação do livro "Dianética - A Ciência Moderna da Saúde Mental". Foi quando apresentou ao mundo um sistema de autoajuda que viria ser a base da comunidade.
Tanto Hubbard quanto sua filosofia foram perseguidas por décadas em países como EUA, Alemanha e França (onde a igreja chegou a responder a um processo por fraude). Acabou liberada em todos, ainda que, em alguns, sem o status religioso. No Brasil, o CNPJ indica "atividade religiosa" e se serve do benefício de isenção de impostos, garantido em lei.
A chegada por aqui se deu pelas mãos da brasileira Lucia Winther. Após ser iniciada nos preceitos de Hubbard em 1992, nos EUA, Winther quis inaugurar por aqui a metodologia que, nas suas palavras, "ampliou minhas capacidades". Detentora dos direitos de publicação da obra de Hubbard no Brasil, ela vê o crescimento da cientologia por aqui com passos lentos, mas satisfatórios. "O brasileiro lê pouco e tudo na cientologia é baseado em leituras. Não tem culto, nem batismo. Não é uma igreja de grandes massas, é individual. Mesmo assim, com investimentos nossos, estou bem contente com o resultado."
Ela dribla as dificuldades com palestras para públicos diversos, incluindo professores e policiais. Muitas acontecem em São Paulo e abordam temas como "Caminho para a Felicidade". "É algo paralelo à igreja. A pessoa é totalmente livre para decidir se quer saber mais ou não."
A palavra "igreja" não costuma aparecer nesses momentos — nem na fachada do espaço, onde uma placa bege escrita "Scientology - Missão Zona Sul" quase passa despercebida — os membros preferem se referir à religião sempre em inglês. A faixa colorida, ao lado, grita mais aos olhos: destaca "Dianética Brasil", seguida por uma mensagem entre caixa alta e baixa com os dizeres: "Desperte o POTENCIAL da sua MENTE".
Ney explica o motivo da ausência do termo: a presença da religião no Brasil ainda é considerada "missão". "Não temos pessoal preparado para entregar todos os serviços", diz. Hoje, são três "missões" brasileiras, todas em São Paulo (além da unidade na zona sul, há uma na zona leste e outra no ABC Paulista), fora os grupos que atuam em campo pelo Brasil.
O número de adeptos é estimado a partir da venda da obra de Hubbard no país: 200 mil exemplares. Os livros estão expostos na sala ampla da casa e também pela internet. É, segundo eles, a principal fonte de recursos do espaço.
Eu, clear
Numa sala pequena no térreo, com carpete, lousa e lâmpadas tubulares que se sobrepõem como um crucifixo, os membros sentam-se em círculo para explicar os ensinamentos da religião. "Existe um estado ideal em que a pessoa alcança o equilíbrio emocional mais intenso. Esse estado é chamado de clear, 'claro'. A mente que é clara é a de alguém que estudou e entrou em sessão com o auditor", explica Tony Carvalho, 41. Natural de Recife, vinha muitas vezes ao ano para São Paulo para alcançar tal benesse. Carvalho conta que descobriu a filosofia pela internet, ao procurar uma forma de tratar os problemas de animosidade e ansiedade — "eu e a torcida do Flamengo", brinca.
Analista de sistemas, Tony hoje trabalha na unidade coordenando o contato com o público. É um clear, como simboliza o bracelete de prata com o símbolo da religião. Com camisa social branca, tom amistoso e mãos sempre entrelaçadas, ele diz que o objetivo ali é tornar a sociedade "mais sã". "A gente fala de um tema comum na sociedade, problemas de relacionamento, controle emocional. Como é que eu o atraio? Faço uma palestra de inteligência emocional para que a pessoa entenda", explica.
O contato com o público, seja na rua ou em redes sociais, é focado em testes de personalidade e vídeos curtos com temas práticos que mais lembram a abordagem dos "coaches", como "Integridade e honestidade" e "Como resolver conflitos". Se o interessado quiser prosseguir no estudo, um supervisor traça um plano de cursos, exercícios e audição com o e-metro. A igreja não informa os valores dos serviços prestados, a não ser os dos introdutórios — em média, R$ 250.
Cada iniciado tem seus dados arquivados em pastas beges, com inscritos em espanhol. "Confidencial: Contiene Materiales de Privilegio de Secreto Confesional Ministro Religioso/Feligrés". São 11 mil pessoas registradas no espaço da zona sul.
A igreja ainda diz fazer "esforços humanitários" em torno de desastres no Brasil, como o rompimento da barragem em Brumadinho, em 2019. Na ocasião, distribuíram folhetos e fizeram doações. "É um auxílio às pessoas que estão com dor", explica Simone.
Arquivo confidencial
Uma tabela no meio da escada marca o estágio de cada membro dentro da jornada religiosa, chamada por Hubbard de "Ponte para Liberdade Total". A foto de Ney Gonçalves sorridente aparece no lugar mais alto. "Ele é um caso à parte", diz Simone, orgulhosa. "Tem um Q.I. anormal."
O principal auditor brasileiro mergulhou na religião em 2013, na meca da Cientologia, em Clearwater, estado norte-americano da Flórida. Estudou também em Los Angeles — área de maior concentração da comunidade e sede do propagado Centro de Celebridades, voltado à classe artística de Hollywood. "Cruzei muitas vezes com Tom Cruise. Eu estudava no térreo, ele no terceiro andar", garante o auditor.
A adesão das celebridades serviu de vitrine aos propósitos da Cientologia, mas também jogou luz às mais diversas histórias e versões em torno da sua mitologia, que vão desde privações à perseguição de ex-membros.
Para Lucia Winther, tal fama é fruto da imaginação de pessoas problemáticas. "Quando elas vêm para a 'Scientology', muitos têm alguma situação mental. Tinha um moço que ligava para mim e dizia que estava sendo perseguido", explica por telefone.
O e-metro, trazido de Los Angeles ao custo de US$ 5 mil, também é contestado por alguns especialistas em ciência da computação. "Interpretar movimentos de uma agulha é como ler folhas de chá", avalia David S. Tourestsky, professor da Universidade Carnegie Mellom, destacado crítico da cientologia.
No livro "A Prisão da Fé", sobre a expansão da filosofia em Hollywood, o jornalista americano Lawrence Wright revela que Hubbard mantinha sem manuscritos pessoais suas reais motivações: a crença em entidades intergalácticas e "mentes que se comunicam através de grandes distâncias."
"Eu nunca tive contato nenhum com nada que parecesse anormal, isso é coisa que a imprensa criou", rebate Lucia. Os membros atestam, no entanto, o aumento de Q.I. e, em alguns casos, pessoas que deixaram de usar óculos. Com anos de astigmatismo, Tony diz ter abandonado as lentes. "Me dei conta logo nas primeiras sessões que eu não precisava mais delas para ler", garante, mesmo sem a confirmação de um oftalmologista.
Na posição de cientologista mais bem graduado no Brasil, Ney Gonçalves se encontra na fase final da ponte de Hubbard, chamada OT VII — a partir dessa etapa, a jornada rumo à "liberdade total" fica mais seleta (e um tanto misteriosa). No painel que esmiúça todo o trajeto, as fases a partir do OT VIII constam como "ainda não lançado". "A gente precisa que o planeta esteja em determinada condição para entregar isso. O que aconteceria se você colocasse uma orquídea no deserto?", justifica o auditor.
A abordagem das três últimas fases também é desconhecida e, na tabela, aparecem com o aviso de "confidencial". Pergunto o que Ney imagina ser ensinado no apogeu espiritual. Ele fala baixo: "Seria uma pessoa que já não adoece, com suas percepções mais afloradas, a capacidade num nível mais avançado."
No contato com o público, Tony diz que lida apenas com questões mais terrenas. "Nunca conheci ninguém aqui que queria desenvolver uma habilidade telepática. As pessoas vêm para se tornarem mais capazes de viver entre seus semelhantes, não para desenvolver uma habilidade Jedi", diz, fazendo piada. "Mas, como clear, me sinto meio Jedi. Brincadeiras à parte, eu adoro 'Star Wars'."
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