Topo

Sambista do Grajaú vira luthier de banjo e cavaquinho, e ensina o ofício

Ricardo Rabelo, o sambista luthier, em sua oficina no Grajaú, na zona sul de São Paulo - Keiny Andrade/UOL
Ricardo Rabelo, o sambista luthier, em sua oficina no Grajaú, na zona sul de São Paulo
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Adriana Terra

Colaboração para o TAB, de São Paulo

22/05/2022 04h01

Ricardo Rabelo, 47, costumava acompanhar o primo nas rodas de samba da Vila Joaniza, zona sul de São Paulo, onde morava. "Vamos lá, Rabelinho!", ouvia ele. Chegando aos lugares, ficava sentado prestando atenção em tudo. O primo músico deixava um instrumento em seu colo. Com 13, 14 anos, Ricardo começou a tocar timba de corte e timba maior. Foi pegando disciplina.

Corta para anos mais tarde. Já se iniciando nos instrumentos de corda, Rabelo foi ao Rio com o irmão para comprar um cavaquinho na Do Souto, loja quase centenária que tinha Pixinguinha como cliente. Na avenida Marechal Floriano, foram convidados a subir ao segundo andar para conhecer a fábrica. Das escadas, ouviram um violão. Foram chegando perto e era o Dino Sete Cordas (1918-2006). "'Podem entrar, meninos, tô aqui estudando', ele falou. Aí meu irmão e o Cacá [amigo que os acompanhava] tocaram choro com ele, tiraram a maior onda", lembra.

A emoção de assistir a um dos maiores violonistas brasileiros estudando se misturava ao fascínio de ver os instrumentos sendo produzidos ali naquele prédio. Tanto a infância, nas rodas de samba com o primo, quanto esse dia marcaram o paulistano. Ouvi-lo falar sobre o passado ajuda a entender a postura que ele carrega, de desejo de aprender e reverência. "Eu sempre mexi nos meus instrumentos. Às vezes não tinha o que fazer e falava: 'vou limpar'", conta.

Ricardo Rabelo trabalha na madeira para fazer banjos e cavaquinhos - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Imagem: Keiny Andrade/UOL
Ricardo Rabelo trabalha na madeira para fazer banjos e cavaquinhos - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Essa curiosidade levou o amigo de bairro Criolo, com quem hoje toca, a incentivá-lo a aprender o ofício da lutheria (ou luteria). "Você precisa ter um plano B, porque quando não tiver lugar pra tocar, como vai ser?", ouvia dele. Em 2014, o cantor presenteou-o com um curso. Por um ano e meio, Rabelo ia do Grajaú ao Sumaré, na zona oeste de São Paulo, para estudar. Com o primeiro cavaquinho que fez, retribuiu o gesto: deu ao amigo que, na sequência, encomendou-lhe outro. "Com o dinheiro, comecei a investir: comprar madeira, ferramenta."

'Tá aprendendo, não senta na roda'

Após anos em uma pequena garagem na casa da família, Rabelo hoje trabalha na sala de um sobrado amplo no Parque Grajaú produzindo banjos e cavaquinhos. É ali que fica a recém-inaugurada Casa 27, projeto do grupo que ajudou a fundar, o Pagode da 27, cuja história acompanha sua vida.

Das rodas de samba com o primo, entrou aos 19 anos para o grupo Procedimento. Ali, migrava da percussão para as cordas. Quem deu o empurrão foi o irmão, Alexandre, que tocava cavaquinho e decidiu que, para formar a banda, ele tocaria banjo.

O luthier Ricardo Rabelo, abraçado a um banjo feito por ele, em sua oficina no Grajaú - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
O luthier Ricardo Rabelo, abraçado a um banjo feito por ele
Imagem: Keiny Andrade/UOL

"'Mas é um instrumento caro', falei. Minha mãe ajudou com uma parte, eu vendi umas roupas e consegui comprar. A gente tinha acabado de se mudar para o Grajaú, e logo abriu uma escola onde comecei a estudar", conta. Dois meses depois, o dinheiro ficou curto e ele teve de parar as aulas, mas aquele período foi importante para lhe dar base e impulso. Em casa, foi ouvir os discos de samba da família e tirar as músicas de ouvido.

Ao aprender a tocar uma canção nova, ia para as rodas da região com o banjo e aguardava o momento de a entoarem. Nesse período, mais uma vez teve de saber ouvir e observar. "Como é, esse banjo não toca?", lhe diziam. Respondia que estava aprendendo. "Tá aprendendo, não senta na roda", um dia escutou.

"'Ó, já aprendi essa', pensei. Porque eles tinham razão. Tudo que você ouve, se souber absorver, filtrar, serve de estímulo." De uma música por semana, começou a tirar quatro. Ao passo que o grupo ia se formando e se apresentando na noite, ele - fã de Fundo de Quintal, pioneiro em levar o banjo ao samba - ficava encantado ao ver o instrumento valorizado nas rodas acústicas. "A gente ia pros botequins e os caras tocando três banjos. 'Isso aí que quero pra minha vida', pensava. Estava começando a ficar com o ouvido apurado e já tinha a autocrítica do 'se está aprendendo, não senta na roda'. E nunca peça pra tocar, deixa te convidarem. E começaram a me chamar."

Aos domingos, saía de casa procurando a música. Foi percebendo que essas rodas envolviam sempre a mesma turma que, aos poucos, ele passou a integrar. Chegava cedo, arrumava o local. "Foi quando aprendi de verdade o que é o samba", diz. Sem lugar fixo, após darem com a cara na porta do bar que um dia os receberia, encontraram um local na rua 27. Por ali, fincaram bandeira. A via hoje tem outro nome, mas o antigo endereço foi imortalizado pelo grupo.

Ricardo Rabelo, luthier, olha para seu assistente Leandro Carvalhal (abraçado a um banjo) - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Ricardo Rabelo, luthier e seu assistente Leandro Carvalhal (abraçado a um banjo)
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Uma orquestra de cavaco

Foi a mesma postura observadora de Rabelo no samba que o guiou na lutheria. Quando já tinha a oficina em casa, passou um período como auxiliar de Agnaldo Luz, conhecido artesão da região que o incentivou a fabricar banjo, já que até então ele só fazia cavaquinhos. "Rabelo, você toca banjo, por que não faz banjo?", lhe falou.

Não queria receber pelo trabalho, já que considerava ali uma "pós-graduação", então ganhou materiais que se converteram em novos instrumentos. "Transformar morte em vida" é o mote do sambista, e tem a ver tanto com o uso da madeira quanto com a transformação social que uma atividade como essa pode promover.

Há dois anos, é acompanhado na oficina por Leandro Carvalhal, 28. Formado em música pela EMESP Tom Jobim e pela Universidade Sant'Anna, Carvalhal lembra que, menino, ficava vendo a roda do Pagode da 27 no bairro onde cresceu e pensando: "será que um dia vou estar ali?". Em 2018, o grupo se apresentou na lendária roda de samba do Cacique de Ramos, no Rio, e ele foi acompanhar. Em 2019, voltou ao local já tocando com eles.

A história de Carvalhal no samba também vem de família. Apaixonado por música, o pai queria ser bandolinista, mas não teve tempo para se dedicar. Estimulou o filho a estudar e conseguiu que ele tivesse aulas com um antigo amigo que integrava o grupo de pagode da década de 1980 Chora Menino, que reencontrou por acaso após anos. Dali, Leandro não parou mais.

No ateliê, estão preparando hoje tanto instrumentos encomendados por clientes quanto para um projeto do Pagode da 27. A ideia é que, até o fim do ano, seja criada uma orquestra de cavaco com crianças e adolescentes que participarão do processo.

"Qualquer tipo de conhecimento não dá pra guardar, tem que passar para frente", acredita Rabelo. Além do grupo e da produção de instrumentos, hoje bastante articulados, ele se prepara para lançar seu primeiro trabalho solo, "Parte da Revolução", com capa feita pelo amigo Elifas Andreato, que homenageia em uma canção - é a última criada pelo artista que morreu em março, contou seu filho ao luthier.

Andreato fez parte de momentos importantes da vida de Rabelo, como quando dividiu o palco com Paulinho da Viola em show em parceria com Criolo, com cenografia do artista. Na ocasião, o músico do Pagode da 27 foi assistir à apresentação, mas, ao saber que ele tocava com o rapper, Paulinho o chamou. "Cecília, arruma um figurino pra ele", ouviu-o dizer à filha. A canção feita para Elifas, o paulistano mostrou antes para Paulinho. Ouvir com atenção quem se respeita, enfim, é parte fundamental da trajetória desse luthier sambista.