'Fiz por merecer': autor mais censurado, Plínio Marcos também foi repórter
"Meus cupinchas, o boteco La Boeme era uma pedreira dentro da boca pesada da noite santista." Assim começa a reportagem sobre Nêgo Orlando, conhecido leão-de-chácara de boates do cais do porto. Quem fez a entrevista e assina o texto publicado no jornal Última Hora em 6 de julho de 1969 é Plínio Marcos.
Sempre na lista dos maiores dramaturgos brasileiros (e no topo como o autor mais censurado), Plínio Marcos (1935-1999) foi buscar nos jornais e revistas o ganha-pão durante a última ditadura, quando suas maiores obras estavam todas proibidas — afinal, retratavam um país de marginalizados que os militares não queriam mostrar.
"A ideia era torná-lo conhecido pelo grande público para que ficasse mais difícil que o regime sumisse com ele", conta Oswaldo Mendes, que foi colega de redação e escreveu a biografia de Plínio intitulada "Bendito Maldito". No mesmo ano de 1968, Plínio virou colunista de jornal e protagonizou o personagem Vitório em "Beto Rockfeller", novela da TV Tupi que revolucionou a linguagem do gênero. A fama, porém, não evitou que fosse detido duas vezes durante os anos de chumbo.
Plínio entrevistou desde políticos, como o ex-presidente Jânio Quadros, até sambistas da velha guarda paulistana. O texto de seu encontro com Tom Jobim em 1974 começa assim: "Por não acreditar na pontualidade de artista carioca, saí da redação pro apontamento exatamente às 14 horas." E arremata a seguir: "Quebrei a cara. Ao chegar ao teatro, o Tom já estava no piano. Fiquei admirado em voz alta: pombas!"
Mas a maior parte de sua produção foi de crônicas sobre o "povão lesado". Plínio se definia como "repórter de um tempo mau" até quando estava na função dramaturgo. "Se algum talento porventura tenho, é o de ver e ouvir a minha gente", escreveu no prefácio do livro "Histórias das Quebradas do Mundaréu", publicado em 1973, reunindo 43 textos seus que saíram na imprensa.
O caos é meu cais
Plínio levou dez anos para chegar e terminar a quarta série. Uma das razões para largar os estudos foi não conseguir acompanhar as aulas: como as professoras o forçaram a escrever com a mão direita era sempre o último a copiar as lições. O curioso é que toda sua obra artística e jornalística foi manuscrita, com uma letra bonita e arredondada.
Foi funileiro, estivador e ponta-esquerda dos times juvenis da Portuguesa Santista, do Jabaquara e depois na várzea da cidade portuária. O pai, um bancário espírita, arrumou para ele um posto de vendedor de livros dessa crença em uma banca no centro de Santos — e a vida de camelô o acompanhou até a morte.
Por essa época, um amigo seu foi cantar em um circo, e Plínio se apaixonou por uma garota circense. Para ficar mais perto dela, decidiu se aventurar no picadeiro como palhaço. Fez sucesso e trabalhou em várias companhias. Até que em 1958, aos 23 anos, apareceu uma vaga para substituir no dia seguinte um ator de uma peça infantil. A diretora era Patrícia Galvão, a renomada escritora modernista Pagu, que se estabelecera em Santos e renovara a cena artística da cidade.
Plínio entrou no teatro amador local e passou a frequentar o círculo de intelectuais que orbitavam em torno de Pagu, com leitura aos domingos de peças como "Esperando Godot", de Samuel Beckett, e "A Cantora Careca", de Eugène Ionesco.
No ano seguinte, impactado por uma notícia que chocou Santos, ele decide escrever sua primeira peça: "Barrela" conta a história de um jovem de classe média que foi preso e acabou estuprado por seus companheiros de cela. Plínio leu o texto para os amigos do circo, e eles acharam que estava louco. Mostrou para Pagu, que se impressionou com os diálogos e procurou quem a montasse. A partir daí, Plínio Marcos conheceu a fama e outra fiel companheira de sua carreira, a censura.
O 'proibidão'
"Barrela" teve uma única apresentação em Santos e ficou proibida por 21 anos, de 1959 a 1980, atravessando tanto período democrático quanto autoritário. O mesmo destino tiveram outras obras suas.
Mesmo sendo uma colagem de vários autores, como Bertold Brecht, Pablo Neruda, e até da Bíblia, a peça "Reportagem de um Tempo Mau", de 1965, foi censurada por ter a assinatura de Plínio. O banimento de "O Abajur Lilás" chegou até o STF (Supremo Tribunal Federal), com derrota na votação dos ministros após intensa campanha da classe teatral.
Já "Navalha na Carne" foi censurada, liberada para uma temporada após pressão da atriz Tônia Carrero, que tinha generais na família, e outra vez vetada com o AI-5, ato institucional que reforçou a repressão em dezembro de 1968.
Convidado por João Apolinário, que era o crítico de teatro e editor de variedades do jornal Última Hora, Plínio se transformou em colunista. Por conselho do também dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues, que era seu amigo apesar das diferenças ideológicas, começou a escrever semanalmente, para ter tempo de elaborar as crônicas. Os primeiros textos foram sobre futebol e seu querido Santos de Pelé.
Em 1969, a seção, que se chamava "Navalha na Carne", passou a ser diária e já abordava diversos temas, como criminalidade, samba, religiosidade e, claro, cultura. Deixando de lado os palavrões que pontuavam suas peças, Plínio chamou a atenção pelo linguajar popular que imprimia em suas crônicas.
Ele contava os "pererecos", "mumunhas" e "catimbas" que ocorriam aos miseráveis. Algumas gírias que usava são válidas até hoje como "presepada" e "treta". Outras não se escutam mais, como "esquinapo" e "gronga".
Se meu apartamento falasse
As pilhas de livros e as caixas com fotos e recortes estão por todo lado no apartamento da atriz Walderez de Barros, 82. "No escritório, eu só tenho um cantinho para fazer minhas coisas", brinca a primeira mulher e mãe de três filhos de Plínio Marcos.
"Ele escrevia à noite, sem o barulho da rua, dos filhos e do telefone. Quem é do teatro está acostumado com esse horário. Eu revisava e datilografava durante a madrugada ou de manhã cedo. Tirava erros de grafia, mas mantinha seu estilo popular. Na hora do almoço, ele levava as laudas para a redação na [alameda] Barão de Limeira", relembra Walderez. O dramaturgo ficava de conversa por lá e aproveitava para folhear todos os jornais.
"Plínio se alfabetizou lendo jornal. Na casa de sua família não tinha livro nem biblioteca. Parte do seu imaginário vem das notícias que lia quando garoto", conta Mendes, seu biógrafo.
Aquela era uma época em que havia um censor do governo dentro de cada publicação. Plínio, contudo, sempre tinha outra crônica na manga — alguma sem muita polêmica ou que já tinha sido publicada, mas sem repercussão.
Outra estratégia era uma vez por semana publicar um capítulo com desfecho só no próximo. Fez esse formato de seriado, por exemplo, com a peça "Balbina de Iansã" e a novela "Na Barra do Catimbó". "Assim ele não perdia o leitor e o emprego porque achava que a qualquer momento iria ser demitido", relata Ricardo de Barros, o filho que cuida dos direitos autorais de Plínio e está digitalizando o arquivo, com muitas crônicas nunca publicadas em livro.
Loques e vagaus
Em suas crônicas sobre a bandidagem, os protagonistas são ladrões, traficantes e caguetas, com quadrilhas sendo montadas de última hora e praticando o varejo do crime desorganizado, entre vinganças e trapaças. Não havia facções, mas Plínio já registrava a presença de grupos de extermínio, formado por policiais fora do expediente.
"O que não presenciei, escutei no buchicho. Juro que conto os casos sem aumentar um ponto", escreveu Plínio sobre a veracidade de crônicas. Walderez opina que era a linguagem que chocava o leitor médio. "Não era só contar com inteligência. Ele era visceral. O primor dele eram os diálogos. Plínio mostrava que o povão tinha força, sem romantizar. Realismo não é realidade, não é cópia do real. O dramaturgo, assim como o repórter, é um observador. Eles percebem o que vem à tona."
Em 1976, foi chamado por Mino Carta, então diretor da revista Veja, para assinar uma coluna sobre futebol para driblar a censura. Nas entrelinhas, porém, comentava sobre os problemas do país. Até que fez um texto denunciando clubes, como o Guarani de Campinas, que se beneficiavam de um falso amadorismo de alguns jogadores. Foi a gota d'água. O governo pediu para a editora Abril cortar vários colunistas que incomodavam os militares, entre eles Plínio. E, nessa pressão, Mino saiu também da revista.
Plínio passou a colaborar para o jornal Folha de S.Paulo em 1977, mas já no ano seguinte os textos são cada vez mais espaçados. A partir daí, escreveu de forma esporádica na imprensa alternativa e jornais menores.
A saída mesmo foi voltar para as ruas e ser camelô, função que desempenhou em São Paulo no início dos anos 1960, quando vendia canetas, cigarros e rádios de pilha, contrabandeados pelo porto de Santos, enquanto a carreira artística não engrenava. Dessa vez, porém, Plínio ia comercializar sua obra.
Ele mandava imprimir em uma gráfica de Guarulhos e montava sua barraca em porta de teatro, bar ou faculdade. O primeiro livro foi "Uma Reportagem Maldita — Querô", romance que depois foi adaptado para o teatro e o cinema.
"Minha profissão é camelô, teatro e jornal são bicos", brincava. "Eu nunca fui um escritor profissional. Teria de acabar fazendo milhares de concessões. Mas camelô eu sou dos bons. Vendo meus livros, dou autógrafos e prometo morrer logo para valorizá-los."
A partir de 1980, suas obras começaram a ser liberadas pela censura. Plínio viveu nesse período uma bonança financeira com montagens pelo país todo. "Minhas peças são atuais porque o país nunca melhora. E, se continuar assim, vão virar clássicos", vaticinou.
Não gostava de ser chamado de artista do submundo: preferia "mundo dos que não têm voz". "Relato as misérias humanas. Às vezes, as grandezas", resumiu. "Fui perseguido, mas eu fiz por merecer", ironizava.
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