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'Visceral': montagem brasileira lota teatro em plena greve geral em Paris

A peça Tom na Fazenda no teatro Paris-Villette: "Há algo muito físico [na montagem] que não encontramos na França", diz crítico do jornal Libération - Victor Novaes/ Divulgação
A peça Tom na Fazenda no teatro Paris-Villette: 'Há algo muito físico [na montagem] que não encontramos na França', diz crítico do jornal Libération Imagem: Victor Novaes/ Divulgação

Marina Mesquita

Colaboração para o TAB, de Paris

04/04/2023 04h01

O estudante Gabriel Oliveira, 26, assistiu duas vezes à montagem brasileira da peça "Tom na Fazenda", em cartaz no teatro Paris-Villette. Na primeira, foi levado pela curiosidade. Gostou tanto que voltou, na terça-feira (28). Conseguiu ingressos de última hora. "Foi sorte", reconhece, pois os ingressos para a última semana se esgotaram rapidamente — como tem sido nessa temporada de raro sucesso de público e crítica na capital francesa.

Apesar da greve que paralisava Paris, o teatro lotou e a temporada, que se encerraria no dia primeiro de abril, foi prorrogada até o dia 5. Encenada em português (com legendas em francês projetadas num telão sobre a cena), "Tom na Fazenda" conta a história de Tom, personagem que chega a uma fazenda erma e afastada para os funerais de seu namorado Guillaume e lá descobre que mãe do companheiro não sabia de sua existência — e sequer que o filho era gay. O irmão de Guillaume, o violento e homofóbico Francis, o obriga então a sustentar uma mentira.

A potente adaptação brasileira da obra, escrita originalmente em francês pelo canadense Michel Marc Bouchard, foi idealizada pelo ator pernambucano Armando Babaioff, que também interpreta o papel de Tom.

O espetáculo ganhou resenhas elogiosas nos jornais Le Monde e Libération e uma crítica positiva na exigente revista cultural Télérama.

Tom na Fazenda em Paris - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
O ator e financiador do projeto, Armando Babaioff: 'Não somos só uma companhia de teatro, sou um empresário'
Imagem: Arquivo pessoal

Temporada rara

Segundo o produtor da obra, o carioca Sérgio Saboya, 61, as apresentações no Paris-Villette só não foram estendidas ainda mais porque alguns atores tinham outros compromissos. "É raro que um espetáculo fique tanto tempo em cartaz ali, em geral mesmo peças francesas costumam ficar de uma a duas semanas", confirma a diretora de comunicação do espaço, Rozenn Tanguy.

Em cena, desenrola-se um jogo de tortura, violência e sedução entre Tom e Francis, que expressa a ideia contida no prefácio de Bouchard para a versão original da peça: "Antes de aprender a amar, os homossexuais aprendem a mentir."

Tom na Fazenda em Paris - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Babaioff, Soraya Ravenle, Gustavo Rodrigues e Camila Nhary: êxito incomum do teatro brasileiro
Imagem: Arquivo pessoal

'Intensidade das emoções'

"Dizem que o Brasil é o país que mais mata homossexuais, mas ser gay é complicado em outros países também, pela dificuldade de ser quem você é, de não se mostrar no trabalho", diz o arquiteto brasileiro Augusto César Magalhães, 40, que vive em Paris há 14 anos e também fazia parte do público. "Conheço pessoas que não conseguem se libertar disso [nem] na França de 2023", conta.

"A mise-en-scène é ótima", diz ao TAB o crítico teatral francês Laurent Goumarre, do Libération. "Há algo muito físico [na montagem] que não encontramos na França."

"Fui surpreendida pela intensidade das emoções e das expressões. É muito visceral", confirma a educadora Margarita, 47, comovida ao sair da apresentação da última terça. Nem todos, no entanto, apreciaram a brutalidade da releitura brasileira. É o caso do aposentado Joseph, 70, que foi conferir a peça depois de ter visto o filme homônimo de Xavier Dolan: "A encenação é, às vezes, um pouco exagerada. Parece mais uma performance."

Tom na Fazenda em Paris - Victor Novaes/ Divulgação - Victor Novaes/ Divulgação
Ensaio no Paris-Villette: 'Encenação reverbera porque aproveitamos a potência do texto nos corpos dos atores'
Imagem: Victor Novaes/ Divulgação

O texto no corpo

Críticas não abalam o diretor Rodrigo Portella. "Gosto de pensar que nem todos gostam", diz ele, que admite ter moderado a intensidade das apresentações iniciais em Paris até chegar a uma atuação mais refinada — sem perder o vigor físico do espetáculo.

"A nossa encenação reverbera porque aproveitamos a potência do texto nos corpos dos atores. Em outros lugares, eles lidam mais com a palavra; nós usamos o corpo", explica o diretor. O produtor Saboya também atribui o sucesso no exterior a essa expressividade assumida. "A criatividade brasileira surpreende, pois o teatro europeu é mais formal, mais antigo."

O palco, depurado ao extremo, se resume a um foco de luz e baldes com água e terra vermelha, tipicamente brasileira. A terra vai ficando lamacenta durante a encenação e, ao final, todos os personagens vão, de alguma forma, se sujando com a lama. Ao longo da peça, Tom, que começa como menino da cidade bem vestido e refinado, vai adquirindo trejeitos de roça, enquanto o chucro Francis passa a emular gostos e modos de Tom, como usar perfume.

Tom na Fazenda em Paris - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Grupo retornará para um novo tour europeu, após dois meses de apresentações no Brasil
Imagem: Arquivo pessoal

Empreendimento artístico

A temporada em Paris surgiu depois de a peça adaptada por Babaioff chamar a atenção na edição 2022 do Festival de Avignon, um dos mais importantes do mundo, que ocorre a cada ano na cidade do sul da França. Após ter comprado os direitos da peça em 2014 e viabilizado temporadas no Rio e em São Paulo, Babaioff desembolsou o resto das economias que juntou atuando na televisão para levar a peça a Avignon e manter sua trupe lá durante um mês.

"Arrisquei e coloquei todo o dinheiro da vida nesse projeto, tive até que fazer análise [por conta disso]", lembra o ator. Ele também abriu mão de convites para atuar em projetos de streaming para se dedicar à peça. "Vestimos a camisa, porque o simbólico que ganhamos não dava para passar o mês", lembra a atriz Soraya Ravenle, que interpreta a mãe de Guillaume e Francis.

O público parisiense, composto por brasileiros mas sobretudo por franceses, correspondeu. E lotou a casa mesmo nos momentos de maior tensão durante a greve geral contra o aumento da idade mínima para a aposentadoria imposto pelo presidente Emmanuel Macron — quando os transportes e a coleta de lixo ficaram comprometidos na cidade.

Depois de Paris, a peça retorna ao Brasil. Nos dias 15 e 16 de abril, a trupe se apresentará no teatro do Parque, no Recife. Em seguida, Natal, Juiz de Fora e Belo Horizonte. São Paulo receberá a peça em maio. Na sequência, volta para um tour na Europa.

Babaioff evoca com orgulho o caminho percorrido. E diz que sua versão de "Tom na Fazenda" só chegou até aqui graças a uma visão de empreendedorismo. "Percebi o potencial artístico e comercial. Tive a oportunidade de cruzar limites impensáveis. Não somos só uma companhia de teatro, sou um empresário", diz.