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'Histeria' na covid-19: por que não se deve usar o termo como Bolsonaro usa

Jair Bolsonaro fala em "histeria" para definir a reação de autoridades frente à pandemia de covid-19 - Reprodução
Jair Bolsonaro fala em 'histeria' para definir a reação de autoridades frente à pandemia de covid-19 Imagem: Reprodução

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

04/04/2020 04h00

Está havendo uma histeria. Este vírus trouxe uma certa histeria. Histeria da imprensa. Histeria da mídia. Histeria da sociedade. Histeria coletiva. Era o pânico, a histeria.

O presidente Jair Bolsonaro tem insistido nisso, nas últimas semanas, quando trata dos esforços brasileiros no combate ao novo coronavírus.

A pandemia não é, contudo, o primeiro episódio em que o atual governo usa o termo. Em agosto de 2019, no auge das queimadas na Amazônia, o encarregado de negócios da embaixada do Brasil nos Estados Unidos, embaixador Nestor Forster, qualificou de "histeria injustificada" a postura de autoridades internacionais frente ao tema. Quase dois meses antes disso, a ministra da Agricultura Tereza Cristina disse que não podíamos "cair nessa histeria", ao comentar dados que mostravam desmatamento recorde da floresta amazônica.

"Quando Bolsonaro fala em histeria, ele não está pensando no conceito psicopatológico. Ele não tem o menor conhecimento sobre isso. Infelizmente, temos um presidente que tem um conhecimento muito limitado de uma série de coisas", diz ao TAB o psicólogo e psicoterapeuta Ari Rehfeld, professor da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). "Quando ele fala em histeria, ele quer dizer que algo, para ele, está errado em uma ordem de grandeza, que está extremamente exagerado, que não é certo. É como se ele pensasse que basta ser um pouco mais forte, um pouco mais estruturado, mais determinado que venceria esses exageros. Talvez nesse sentido, a histeria esteja ligada à ideia de uma fragilidade que, em última instância, é uma perspectiva machista do universo feminino."

Começa na origem do termo. Histeria vem da palavra grega hystéra, que significa útero. "Foi utilizado primeiramente por Hipócrates [estudioso grego que viveu entre os anos de 460 a. C. e 370 a.C, considerado o 'pai' da medicina] para definir uma suposta condição médica relacionada à instabilidade emocional presente em mulheres, especialmente aquelas que não tinham filhos", conta ao TAB a neuropsicóloga Maria Carolina Fontana Antunes de Oliveira, professora da PUC-Minas. "Hipócrates acreditava que a histeria fosse causada por um movimento irregular do fluxo sanguíneo do útero para o cérebro."

E o que é histeria? A ideia foi recuperada e aprimorada no século 19. O mais célebre dos estudiosos a se apropriar do termo foi Sigmund Freud (1856-1939), considerado o pai da psicanálise. "Para ele, a histeria seria causada por vivências traumáticas reprimidas", aponta Oliveira. "Esse foi o ponto de partida para a criação da psicanálise." Assim como o termo hipnose "remete originalmente a 'sono', o termo histeria foi originalmente relacionado a 'útero'. Nos dois casos, isso caiu em desuso. Ficaram as palavras, com outros significados, definições e usos", afirma ao TAB o psicólogo e psicoterapeuta Antonio Carlos Amador Pereira, professor da PUC-SP. "Trata-se de uma condição que envolve alteração de consciência e sintomas motores que parecem muito reais, porém não têm base fisiológica, como paralisia e cegueira", define a psicóloga Marilda Novaes Lipp, diretora do Instituto de Psicologia e Controle do Stress, de Campinas (SP).

Histeria é coisa de gente reprimida? O próprio Freud chegou a apontar algo nessa linha. O termo remete à ideia de que as neuroses têm origem no aparelho reprodutor feminino. Por neuroses, entenda uma vasta gama de sintomas. "A psicanálise caracteriza a histeria como uma neurose complexa, onde conflitos interiores manifestam-se em sintomas físicos, tais como alterações do sistema sensorial — paralisia, cegueira, surdez —, comportamentos disfuncionais, perda de autocontrole a alterações de personalidade", aponta Oliveira. "Era um fenômeno eminentemente feminino e a explicação básica é que as mulheres eram extremamente reprimidas e isso acabava sendo uma forma de extravasar uma ansiedade, promovida por uma quantidade muito grande de desejos e pulsões, sentimentos reprimidos", explica Rehfeld. "Acontecia mais com mulheres porque havia um contexto de repressão sexual. Isso de fato se comprova porque, com a liberação sexual feminina, quando a mulher começa a poder exigir prazer, o fenômeno da histeria diminuiu consideravelmente e aqueles casos tipicamente descritos por Freud se tornaram raros." Usar a expressão, portanto, carrega uma carga de machismo. "Esse é um estigma que permanece, que guarda resquícios do machismo e patriarcado. Ainda hoje, quando uma mulher tem um comportamento explosivo ou quebra algum paradigma, ela ainda é tachada como louca ou 'histérica'. Além de machista, carrega preconceito também relacionado aos transtornos mentais."

O estigma serviu pra alguma coisa? Consagrou-se a história de um efeito colateral positivo do diagnóstico da histeria: que os vibradores femininos teriam sido inventados justamente para tratar esses casos do século 19. A cultura pop ajudou a popularizar essa teoria — como a comédia romântica britânica "Histeria", de 2011. "Apesar de ser romanceado, mostra o final do século 19, quando se acreditava que a histeria era uma doença das mulheres, relacionada a um desconforto uterino", relata Pereira. "Detalhe: a questão não era a erotização, pois a moral vitoriana não admitia o prazer feminino. Do ponto de vista dos médicos, [o uso do vibrador] era um procedimento mecânico e impessoal." Tudo indica que essa versão foi trazida pela primeira vez no livro "The Technology of Orgasm: Hysteria, the Vibrator, and Women's Sexual Satisfaction", obra de 1999 escrita pela historiadora norte-americana Rachel P. Maines. Mas há controvérsias. Em estudo publicado no Journal of Positive Sexuality historiadores refutam a tese: afirmam que massageadores e outros aparelhos eram utilizados como forma de satisfação pessoal por mulheres já na virada do século 20, mas não há evidências de que médicos tenham empregado a ideia como terapia.

Por que virou algo relacionado à fraqueza? "O mal de caráter emocional e psicológico é visto como relativamente desvalorizado na sua importância", avalia Rehfeld. "Desvalorizado erroneamente: é consequência de uma leitura naturalista, uma perspectiva de ciência natural que tende a desvalorizar o que seria subjetivo." "A grande maioria dos xingamentos existentes eram conceitos psicológicos, como imbecil, idiota, mentecapto, débil mental", enumera o psicólogo. "A medicina, gradativamente, vai mudando suas definições para que os novos termos não contenham estigma."

E hoje? Quase não se usa mais o termo em psicanálise. "Atualmente o tratamento do paciente dependerá em grande parte da origem dos sintomas", esclarece Oliveira. "Em casos onde existe uma origem orgânica relacionada aos sintomas, como é o caso da epilepsia, o tratamento é feito normalmente por um neurologista ou neurocirurgião, utilizando medicamentos antiepilépticos ou, em alguns casos, cirurgia. Já em casos onde a origem dos sintomas é emocional, psiquiátrica, o tratamento consiste em medicações e psicoterapia." Lipp lembra que é preciso "entender que a pessoa acometida com esse transtorno não o faz conscientemente. "O que era chamado de histeria é hoje tratado como várias manifestações de transtorno mental", explica ela.

Medo coletivo é histeria? "Esse é um transtorno psicológico que ocorre quando os mesmos sintomas se manifestam em mais de uma pessoa ou em um grupo de pessoas sem causa aparente, ou diante de ameaças de epidemias. Nesses casos, as pessoas tendem a perder o controle das emoções e passam a manifestar sintomas físicos como tontura, falta de ar e náusea", afirma Lipp. "Existem vários exemplos através dos anos de histeria coletiva. O importante é entender que as pessoas envolvidas de fato sentem os sintomas e não estão 'fazendo de conta'." Pereira acredita que o termo "está mais relacionado ao pânico generalizado de uma determinada população". "Se você passa o dia inteiro apavorando pessoas com informações catastróficas, o mais provável é que pessoas mais vulneráveis emocionalmente entrem em pânico", explica ele.

Pânico moral. Em artigo publicado em 1999, o psiquiatra Glenn Swogger Jr. afirmou que "histeria coletiva não é algo raro". "Geralmente envolve características imitáveis que aparecem repentinamente entre pessoas próximas umas das outras e desaparecem dentro de alguns dias", escreveu. Para o psiquiatra Simon Wessely, professor do King's College de Londres, é preciso delimitar as diferenças entre histeria coletiva e pânico moral. Este, ao que parece, tem muito mais a ver com o momento que vivemos: o fenômeno em que uma grande massa está angustiada diante de uma ameaça — que pode ou não ser exagerada.