Paquera na pandemia: entenda o beabá do amor nos relacionamentos virtuais
Por causa do distanciamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus, o amor digital está mais em alta do que nunca. Tão em alta que o sexo virtual e a masturbação foram oficialmente recomendados pelo Ministério da Saúde argentino na tentativa de coibir que a população fure a quarentena para manter relações carnais.
Mesmo antes da pandemia e das exigências de isolamento, não é exagero afirmar que a esmagadora maioria das pessoas que se aventuram no universo do amor online já teve alguma experiência negativa. A mais comum é o bom (e agora já velho) ghosting, termo em inglês que significa algo como "virar fantasma", quando o parceiro simplesmente para de responder mensagens ou desaparece. Uma pesquisa feita pelo site de relacionamentos americano Plenty of Fish, por exemplo, revelou que 78% das pessoas entre 18 e 33 anos já foram "ghosted" ao menos uma vez.
Mas os comportamentos esquisitos não param por aí. Você provavelmente já sofreu com "love bombing", ou um "bombardeio de amor", que geralmente termina com ghosting. Talvez você já tenha sido "pocketed", "cloaked" ou "orbited" e nem saiba que o dicionário do amor digital já tem nome — geralmente em inglês — pra todos esses comportamentos. Listamos aqui os principais antes de continuarmos falando sobre isso. Em tempos de pandemia e romance virtual, tomar cuidado com a paquera online pode ser quase tão útil quanto lavar as mãos.
Não era amor, era cilada
Preparamos um dicionário básico para ajudar você a entender o amor no mundo digital e perceber se está diante de um comportamento que pode ser abusivo
Síndrome do desaparecido
Ghosting - Quando alguém com quem você vinha se relacionando há algum tempo para de responder mensagens subitamente ou não dá mais sinal de vida. Em geral, a vítima do ghosting fica sem entender o que houve de errado.
Cloaking - Quando alguém com quem você vinha se relacionando há algum tempo desaparece e bloqueia você em todas as redes, tornando-se incomunicável.
Zombie-ing - Quando você é ghosted não uma vez, mas duas: a pessoa desaparece, depois volta e recomeça as conversas e os encontros, e depois some de novo. Parece um zumbi.
Síndrome do abusador
Cookie jarring - Traduzido literalmente do inglês, significa algo como "fazer um potinho de biscoitos". O praticante coloca a vítima de lado enquanto decide se quer ficar com outra pessoa.
Pocketing - Uma pessoa é "embolsada" quando está saindo com a outra há algum tempo, sem ser apresentada para familiares ou amigos. É um jeito de evitar compromissos.
Breadcrumbing - Em outra tradução literal, quer dizer "panificação". A ideia é que a pessoa dá "migalhas" à outra para manter o interesse vivo, mas sem se empenhar muito. É o uso de pequenas mensagens de flerte ou curtidas em fotos para se manter em cima do muro.
Gaslighting - É uma forma de abuso psicológico, em que o parceiro nega, distorce ou omite informações para fazer a vítima duvidar de si mesma e de seus sentimentos.
Síndrome da intensidade (ou do desespero)
Love bombing - O "bombardeio de amor" é quando o flerte ganha proporções muito grandes rapidamente. Convites para viagens, presentes inesperados no segundo encontro, surpresas sem sentido. Em geral, é feito por pessoas apaixonadas pela ideia de estarem apaixonadas.
Instragramstanding - É o ato de mandar indiretas nas redes. Vale desde publicar stories no Instagram com a localização explícita até letras de música em legenda de fotos como isca para uma conversa. É praticado por 69% dos jovens com entre 22 e 25 anos, segundo uma pesquisa do site de namoros Plenty of Fish.
Orbiting - Quando o amor acaba, mas uma das partes continua interagindo com a outra nas redes sociais — curtindo publicações, visualizando stories, comentando em fotos. Ou seja, continua "orbitando" o mundo do outro. Pode ser um truque para demonstrar interesse, ou simplesmente um jeito muito doloroso de lidar com o término.
A publicitária paulistana Barbara, 29 anos, nunca namorou sério e coleciona histórias do tipo. Houve o moço que "apareceu e sumiu com a mesma velocidade", não sem antes convidá-la para uma viagem de iate pela Croácia — que ela recusou, assustada com o bombardeio de amor. E outro que, após o primeiro encontro, queria levá-la para conhecer a família nos Estados Unidos — e aí desapareceu completamente. "Ele queria me levar para conhecer os pais depois de um encontro, continuou mandando mensagens até que, do nada, parou", conta. "Não dá para entender as pessoas."
Do analógico ao digital
"Esses comportamentos sempre existiram. O ser humano não é tão diferente assim", explica a psicóloga Adriana Nunan, autora do livro "Relacionamentos Amorosos Na Era Digital", que escreveu em parceria com a colega Maria Amélia Penido. "A internet facilitou a profusão deles e ajudou a colocar nomes. As pessoas também acabam tendo mais parceiros -- o que aumenta as possibilidades de passar por essas experiências."
Antes da existência dos apps e de redes sociais, o mais comum era que as pessoas se conhecessem através de amigos, o que dificultava a maioria desses comportamentos. "Antes, havia mais vergonha e mais a perder", explica Nunan. Não que seja impossível ser ghosted nessa situação: a administradora Marcella Motta, 28 anos, teve um quase-relacionamento com um amigo de amigos — que sumiu no dia seguinte ao do pedido de namoro.
"Ele me chamou para conversar num sábado de madrugada, estava voltando da balada, mas claramente sóbrio", lembra. No meio de um discurso emocionado sobre o quanto gostava dela, perguntou se ela queria ser sua namorada. "Até questionei se ele tinha certeza daquilo, por causa do horário e do contexto, mas ele disse que sim", diz. "No dia seguinte, contei para minha mãe toda feliz que estava namorando", lembra. E aí o menino nunca mais deu as caras. "Foi horrível ter que contar para as pessoas que talvez eu não estivesse namorando."
Três meses depois de não dar as caras nem no grupo de amigos em comum, o menino apareceu. E Motta o confrontou. "Ele disse que eu estava viajando, que não era possível que tivesse achado que ele estava falando sério", lembra.
Talvez sem se dar conta, Motta foi vítima do que hoje é chamado "gaslighting", outro termo que ganhou nome — e força — por causa do amor digital. É quando alguém faz a pessoa acreditar que ela entendeu tudo errado, seja porque jamais teria dito algo ou por não ter falado seriamente. "É um comportamento de relacionamentos abusivos, faz a pessoa começar a duvidar do que pensa e sente", explica a psicóloga. "Acontece há muitos anos, mas agora se fala mais sobre isso."
A banalização da cilada no amor
Dar nome aos comportamentos — ainda que todos sejam em inglês — foi um dos passos para que se falasse mais sobre eles e se começasse a entender melhor por que ocorrem. Até porque, não importa se no mundo real ou no digital, relacionamentos nunca são fáceis. "Em uma relação, você está constantemente se doando, mostrando quem você é, e nem todo mundo tem saúde mental para isso, pois relacionamentos requerem conciliar você com outra pessoa", explica Nunan.
No digital, porém, os processos acabaram muito "atropelados" ou adiantados, conforme explica a sexóloga Margareth dos Reis, doutora em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). "Um relacionamento não é algo que chega de encomenda, mas, no mundo digital, ficou tudo muito veloz, com uma grande variedade até de sensações e sentimentos em relação ao que acontece", diz Reis. Diante dessa rapidez, muitas pessoas ainda estão "aprendendo como se comportar", na visão da sexóloga. "Às vezes é preciso usar um freiozinho, porque no ambiente virtual as coisas podem sair do controle."
O problema é que isso, somado à sensação de que está mais fácil entrar e sair de relacionamentos, talvez esteja nos levando a uma "banalização" desses comportamentos — que muitas vezes são abusivos. Um levantamento do aplicativo happn, em parceria com o YouGov, mostrou que 82% dos jovens acreditam que ficou muito mais fácil flertar após o surgimento dos sites e apps de namoro. "Há um efeito cascata que parece fazer parte de um ritual [de relacionamentos digitais], em que se começa a banalizar algo que não é legal", opina Reis.
Para não correr o risco de cair em ciladas emocionais ou físicas, é importante ter muito auto-conhecimento para evitar padrões de relacionamentos negativos repetitivos e de não se deixar abalar por maus-comportamentos. Às vezes, por trás de um love bombing pode haver um narcisista ou psicopata, observa Nunan. "Existe gente que não vê bandeiras vermelhas, ou vê e prefere ignorar."
Ao mesmo tempo, entender que o problema pode estar no outro e não em você — caso do ghosting — pode ajudar a superar experiências negativas. "No fundo, está todo mundo no mesmo barco, mas uns sabem navegar mais que os outros", diz Nunan. Conhecer e entender o linguajar pode ser um primeiro passo na direção da calmaria.
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