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'The Good Fight' chega à 4ª temporada discutindo Trump e política sem medo

Elenco de "The Good Fight" - Divulgação
Elenco de 'The Good Fight' Imagem: Divulgação

Arthur H. Herdy

Colaboração para o TAB, de Brasília

08/09/2020 04h01

Em novembro de 2020 os americanos vão às urnas. Parece que foi ontem, mas já faz quase quatro anos que Hillary Clinton tomou posse como presidente dos Estados Unidos. Não, isso não é fake news. Ela assumiu a Casa Branca, mas só na mente de Diane Lockhart (Christine Baranski), a idealista advogada que protagoniza "The Good Fight", série da CBS All Access exibida no Brasil pelo Amazon Prime Video.

Na estreia da quarta temporada, ainda sem previsão de chegar por aqui, o delírio vai além do resultado das eleições: a floresta tropical respira aliviada e a cura do câncer está próxima. Só que nessa realidade paralela, nem tudo são boas novas: Harvey Weinstein, o produtor-predador de Hollywood, nunca foi denunciado, e o #MeToo não existe. Ao fim do episódio, tudo se resolve e prevalece a realidade. Mas o capítulo sintetiza a tônica da série, que não tem pudores para comentar os assuntos mais instigantes da atualidade.

Logo na primeira cena do piloto, ainda em 2017, Diane Lockhart assiste consternada ao juramento de Donald Trump no Capitólio. Ela decide largar o emprego e mudar-se para a França, mas descobre que suas economias foram pelo ralo num esquema pirâmide, o que a força a procurar um novo emprego. O programa, derivado de "The Good Wife" (2009-2016), começa um ano depois de onde sua antecessora parou. "A eleição de Trump deixou a série essencialmente mais política, pois pensamos que ele tem uma grande capacidade para transformar o tema em algo ainda mais central na nossa vida cultural", contam os criadores Robert e Michelle King, em entrevista por e-mail ao TAB.

Tal frescor impressiona. Quem esperava ver uma típica série de tribunal pode ter se frustrado. Em quatro anos, foi abordada uma gama de discussões que vão da diferença de salários entre brancos e negros, o poder do voto de Taylor Swift, um escândalo de golden shower (sim, os americanos também tiveram o deles), neonazistas apanhando, mistérios sobre a morte de Jeffrey Epstein e até a vitória de "Parasita" no Oscar 2020. "Nós criamos, escrevemos, filmamos e editamos os episódios muito perto de suas exibições", afirma o casal King, que desenvolveu o projeto com Phil Alden Robinson. "É um planejamento caótico que leva ao pânico, mas resulta em programas que parecem mais 'do momento'", explicam.

O outro lado

À primeira vista, a série pode parecer panfletária, completamente anti-Trump, mas há tentativas de equilíbrio. Quando perde suas economias, Diane vai trabalhar em uma firma majoritariamente negra. Lá encontra outro egresso de "The Good Wife", Julius Cain (Michael Boatman), um conservador. A advogada é casada com Kurt McVeigh (Gary Cole), defensor do porte de armas e republicano.

De forma original, a crítica mais contundente aparece em forma de videoclipe animado, quebrando a narrativa principal. "Eles aproveitam elementos lúdicos, animações, canções e devaneios dos personagens, para colocar o dedo na ferida de forma muito inteligente", afirma o publicitário Michel Arouca, editor do site Série Maníacos.

"Odiamos como a maioria dos programas de TV apenas dá ao público o que ele quer politicamente", explicam os criadores da série. "Em um ponto a série é parcial: achamos que nosso atual presidente, Donald Trump, é um desastre para este país. Mas, na maioria das vezes, a narrativa é sobre o colapso psicológico da esquerda e como a perda de certas garantias institucionais tornou a prática da lei mais difícil."

Séries sobre política

"The Good Fight" não é a primeira iniciativa a abordar o assunto na TV norte-americana. A partir do fim dos anos 1990, o tópico tornou-se frequente. O drama "The West Wing" (1999-2006), de Aaron Sorkin, com Martin Sheen, ganhou mais de 100 prêmios e marcou época. Se Diane Lockhart delirou com a possibilidade de uma mulher na presidência, Geena Davis já havia assumido o Salão Oval em "Commander in Chief" (2005-2006). Para a criadora Shonda Rhimes, a Casa Branca era um dos cenários de "Scandal" (2012-2018), enquanto a comédia "Veep" (2012-2019) transformou Washington em picadeiro, garantindo vários Emmy à estrela Julia Louis-Dreyfus.

Elenco da série "The West Wing" posa para foto com prêmios Emmy - Divulgação - Divulgação
Elenco da série "The West Wing" posa para foto com prêmios Emmy
Imagem: Divulgação

Foi com "House of Cards" (2013-2018), da Netflix, que política e TV tiveram uma de suas mais bem-sucedidas fusões. Versão de uma minissérie inglesa, o mote da produção era a ascensão meteórica do congressista Frank Underwood, calcada em artimanhas e diversos crimes. A série terminou sem o protagonista Kevin Spacey, acusado de assédio sexual. Em tempos de Operação Lava Jato, Eduardo Cunha e do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, era comum ler nas redes sociais que nem o roteirista de "House of Cards" pensaria em tantas reviravoltas.

Para competir com a vida real, entretanto é preciso um pouco mais para algo do tipo vingar no Brasil. "Temos certa desconexão com a política. A gente não consegue conectá-la ao cotidiano, com nossas forças e falhas morais. Por isso, os produtos mais autênticos ficam emperrados. Não achamos ainda o ângulo certo para o que estamos vivendo, uma expressão potente, em que o público reconheça conexões", declara o roteirista e escritor Ricardo Tiezzi, professor da Oficina de Séries da Roteiraria, escola de escrita para o audiovisual em São Paulo. Difícil superar a trama rocambolesca do caso Flordelis, por exemplo.

Cenas brasileiras

A produção nacional, de fato, ainda é tímida, sendo uma das exceções "O Mecanismo" (2018), criação de José Padilha e Elena Soarez para a Netflix que falava da Lava Jato. Com tradição no melodrama, o Brasil ainda não possui um equivalente a "The Good Fight" nas séries. O que não significa que o tópico esteja à margem em outros formatos, principalmente nas novelas.

O Bem Amado, uma das obras mais populares de Dias Gomes - Reprodução / Internet - Reprodução / Internet
'O Bem Amado', uma das obras mais populares de Dias Gomes
Imagem: Reprodução / Internet

O trajeto até liberdade de expressão na TV foi longo. Por causa da censura na ditadura militar, os autores tinham que usar a criatividade para fugir da mordaça. Dias Gomes foi um deles. Sua trama "O Bem-Amado" (1973), e o personagem inesquecível Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), prefeito da fictícia Sucupira, são hoje antológicos. "Era uma farsa sociopolítica cujo protagonista é um demagogo, para quem a água poluída não representava problema algum, desde que trouxesse lucro para a prefeitura. Odorico impediu que medicamentos contra uma epidemia cheguem às mãos do Dr. Juarez Leão (Jardel Filho), para que este não se transforme em herói", relembra Mauro Alencar, Doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana pela Universidade de São Paulo (USP).

A grande dama da teledramaturgia, Janete Clair, esposa de Gomes, questionou o status quo em "Irmãos Coragem" (1970) com "uma metáfora do poder político descontrolado". Ela também mexeu em vespeiro ao usar a construção de usinas hidrelétricas, um investimento da ditadura militar, em "Fogo Sobre Terra" (1974).

Já a proibição ao nome de Juscelino Kubitschek em "Escalada" (1975), criação de Lauro César Muniz, foi driblada de maneira criativa: Horácio (Otávio Augusto) assoviava "Peixe Vivo", música símbolo do ex-presidente. Na redemocratização, o mesmo autor adaptou a própria obra "O Crime do Zé Bigorna", já exibida como "Caso Especial" e filme, na novela "O Salvador da Pátria", que foi transmitida em ano eleitoral (1989). Pouco antes da primeira escolha presidencial direta em mais de duas décadas, muitos enxergaram Sassá Mutema (Lima Duarte) como representação do candidato Lula. Na urna, deu Collor — a quem muitos comparavam ao galã Jean-Pierre interpretado por Edson Celulari em "Que rei sou eu?", de 1989.

Os fatos correram rápidos e, em 1992, o então presidente renunciou para não sofrer impeachment. De olho na repercussão, a extinta TV Manchete começou a filmar "O Marajá", que nunca estreou — foi proibida na época por questões judiciais.

Daqui para frente

As novelas abriram caminho, o humor usa a matéria sem pudores (Marcelo Adnet e seu "Sinta-se em Casa" viraram hit e causaram polêmica com o governo recentemente, por causa de uma esquete que parodiava o secretário de Cultura, Mário Frias) e, pelos rumos do noticiário, está mais do que provado que a política brasileira rende assunto. Afinal, o que falta para o país explorá-la em suas séries? Para o roteirista e professor Ricardo Tiezzi, o tema "está esmurrando a porta da sala dos roteiristas pedindo para ser contado".

Robert e Michelle King, que acompanham o cenário político brasileiro e enxergam similaridades com o norte-americano, insistem na fórmula de encurtar o tempo entre escrever e transmitir. Eles continuarão fazendo isso, já que "The Good Fight" tem futuro certo. A quarta temporada foi encurtada devido à Covid-19, mas o quinto ano está confirmado, independentemente do resultado das eleições. "Se a chapa Joe Biden/Kamala Harris vencer, o programa encontrará outras áreas de absurdo", antecipam os King.