Terra plana, CBF e vacina do mal: por que as teorias da conspiração pegam?
Existem aquelas que já nascem com cara de piada de mau gosto: quem tomar a vacina vai virar jacaré, Paul McCartney morreu e foi substituído (até hoje!) por um sósia, em uma estranha doutrinação estão distribuindo mamadeiras de piroca nas escolas, o Brasil amarelou na final da Copa de 1998 porque a CBF vendeu o jogo.
E existem as que se apresentam travestidas de argumentos que soam como ciência -- mas é tudo verniz. Dos terraplanistas que se esforçam para provar seus argumentos aos anti-vacina que relacionam o imunizante a casos de autismo -- o que, já se provou, é infundado. Ou daqueles que acham que a covid-19 foi uma invenção chinesa para dominar o mundo. E que a vacina anti-coronavírus é uma criação do Bill Gates, bancado pelo George Soros, para dominar o mundo. Ou que o homem nunca pisou na lua, é tudo encenação muito bem-feita por Stanley Kubrick. É, tem para todo mundo, dos redondos aos planos.
Fato é que as teorias da conspiração estão aí, para quem quiser consumir. Algumas delas devem ter arruinado sua ceia de Natal, se você acabou se reunindo com parentes que se informam prioritariamente por grupos de WhatsApp. E elas não são novidade. Existem desde que o mundo é mundo, desde que a Terra é redonda.
Quem botou fogo em Roma? Trata-se da mais antiga teoria conspiratória que chegou ao nosso conhecimento: com fama de cruel, depois de ter determinado a execução da própria mãe e da primeira mulher, o imperador Nero (37-68) botou fogo em Roma. Pois pesquisadores contemporâneos tendem a concordar que isso não passa de lenda. Não que o incêndio não tenha ocorrido. Mas, no pico do verão romano, faz mais sentido pensar que tenha sido acidental -- e não causado pelo próprio imperador, colocando em risco seu palácio. Para o filósofo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, "teorias da conspiração sempre existiram porque sempre existiram pessoas propensas a acreditar nelas".
O que leva a crer. "Os que acreditam são aqueles com visão de mundo própria, geralmente bastante ressentidas com suas trajetórias de vida ou que se consideram gênios incompreendidos", explica o filósofo ao TAB. "Esse ressentimento se manifesta numa desconfiança de 'tudo o que está aí', 'da grande mídia', 'do grande sistema'." Para a bióloga Natalia Pasternak, fundadora do Instituto Questão de Ciência e integrante do Comitê para Investigação Cética, são dois pontos que levam a pessoa a acreditar e abraçar teorias da conspiração. "Primeiro, a necessidade de pertencer a um grupo, um grupo que acolhe, que pensa como você e que, de alguma maneira, faz com que você se sinta superior ao resto do mundo", diz ela, ao TAB. "Também há a sensação de certeza de que você compreendeu uma situação."
Entre a fragilidade e a superioridade. Conforme explica ao TAB o psicólogo e psicoterapeuta Ari Rehfeld, professor da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), quem acredita em teorias da conspiração costuma ser mais simplista ao raciocinar. "São pensamentos frágeis, pouco desenvolvidos ou sofisticados. Pessoas que preferem crer em uma razão única do que em uma quantidade de possibilidades", resume ele. "Por outro lado, quem cria as tais teorias, busca de algum modo se sobressair dos demais, trazer algo que o outro não pensou. De certa forma, usufruir de um certo poder: o de 'saber' de coisas que o outro não sabe."
Elas fazem mal? Para os especialistas, não importa o tipo de teoria da conspiração, todas fazem mal. Claro que há o problema imediato -- como quando a pseudociência vem contrariar a recomendação razoável de usar máscaras em tempos de pandemia ou de se vacinar em nome da coletividade. Mas mesmo aquelas histórias que soam ingênuas, como o terraplanismo ou algo do tipo, também carregam em si um raciocínio que pode ser prejudicial. "Todas são nocivas, porque fazem parte de um processo que deseduca o cidadão a raciocinar, a pensar de forma crítica", adverte Pasternak. "Terraplanista pode ser alguém que acredita em bobagem. Mas no longo prazo, trata-se de alguém mais propenso a acreditar que vacinas causam autismo. É a grande piada que fazemos com astrologia: é a 'droga' de entrada para outras pseudociências. Quando você já eliminou o pensamento crítico, está muito mais propenso a acreditar em outras teorias."
Hoje há mais teorias da conspiração do que antigamente? Não é verdade. Dois professores da Universidade de Miami se debruçaram sobre cartas dos leitores do jornal The New York Times publicadas entre 1890 e 2010. E constataram que as histórias absurdas e conspiratórias não aumentaram no período. Portanto, a sensação de que elas estão mais presentes pode ser atribuída às redes sociais e ao mundo hiperconectado em que vivemos. "As redes sociais impulsionam essas teorias porque, de algum modo, estamos conectados com vários grupos -- e com a possibilidade de ouvirmos e falarmos com muita gente com as quais eu não falaria antes das redes sociais", comenta Rehfeld. "Elas são facilitadas pelas redes sociais. Hoje está mais fácil pertencer a um grupo. As redes sociais dão força, nesse sentido, para que as teorias da conspiração cheguem a mais gente e recrutem mais pessoas", acrescenta Pasternak.
Dificuldade em tempos de polarização. Em tempos de pandemia, polarização política exacerbada e uso de desinformação de modo institucional, especialistas concordam que é mesmo difícil combater as teorias da conspiração. "Mesmo os profissionais éticos têm dificuldades para contradizer essas teorias, porque a polarização isolou e afastou também os públicos dos diferentes meios de comunicação. Pouco adianta comprovar a falsidade de uma teoria por meio de um telejornal, por exemplo, se o público da emissora já estiver devidamente 'amestrado' para não dar ouvido ao que exige esforço para a compreensão", afirma ao TAB o jornalista Angelo Sottovia Aranha, professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista). "Não podemos negar que, no Brasil atual, a desinformação é institucionalizada, pois vem diretamente do governo federal, do Ministério da Saúde. Isso alimenta teorias conspiratórias e leva as pessoas a desconfiarem cada vez mais", diz Pasternak.
Como combater. Informação de qualidade. Mais e mais. "É preciso mostrar que tais teorias são muito mais improváveis de serem verdade do que a própria realidade", explica a bióloga. "Não há melhor maneira de combatê-las do que investir em informação correta", concorda o filósofo Moraes. "Se as teorias proliferam é porque alguém encontrou um par que ecoa sua visão de mundo muito simplista. E isso tende a ser passado para núcleos menores, núcleos familiares." Ele defende que cada um seja consciente de sua responsabilidade para "sentar com essas pessoas, conversar com elas e, em vez de brigar, tentar mostrar que aquela visão de mundo não é correta e traz malefícios para a sociedade, é perniciosa e, em última instância, precisa ser combatida".
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