Topo

O que um curso de preparação para desastres ensina sobre aproveitar a vida

Unsplash/Kyle Glenn
Imagem: Unsplash/Kyle Glenn

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

24/02/2021 04h00

"Se você acredita que vai sobreviver, você provavelmente vai sobreviver. Se você acredita que vai morrer, você provavelmente vai morrer."

Quando decidi fazer um curso de preparação para desastres, a última coisa que esperava ouvir do professor assistente de enfermagem da Universidade de Pittsburgh Michael Beach, mentor das aulas online, era uma longa reflexão sobre a atitude correta para encarar o quase fim do mundo. Mas a frase acima resume boa parte dos ensinamentos sobre como sobreviver a uma situação de recursos limitados: sair vivo depende, em grande parte, de como você enxerga as coisas.

Primeiro, melhor explicar. Por que uma "guria de prédio", moradora de uma região de São Paulo que não costuma alagar, em um país que não sofre com terremotos, tsunamis ou furacões frequentes foi fazer um curso de preparação para desastres? Bom, talvez a gente não se atente muito a isso, mas está vivendo um desastre agora mesmo.

A pandemia de covid-19 sobrecarregou o sistema de saúde — que inclusive chegou ao limite em estados como Amazonas —, exigiu planos de ação coordenados, estoque moderado de alimentos para evitar muitas idas ao mercado, nos fez aprender a usar máscaras, evitar contaminação pelo ar e superfícies, criar planos de redução de danos para retomar atividades do dia a dia... A definição exata de um desastre.

Conforto no desconforto

O curso está no ar na plataforma Coursera há mais de cinco anos, então não trata diretamente do coronavírus, mas o instrutor avisa categoricamente que um tipo de desastre ao que todos estamos sujeitos no mundo é uma pandemia. Entre os ensinamentos úteis do curso para este momento, estão os diversos modos de filtragem de água — detalhando quais deles removem vírus e bactérias, por exemplo.

Outra coisa importante é saber que tipo de alimento faz mais sentido estocar em casa. Aprendi que as comidas que precisam de água para cozimento — como macarrão ou arroz — podem não ser uma boa ideia, já que você vai precisar usarr água filtrada caso haja algum problema no abastecimento, e assim gastar o recurso mais vital. Aliás, melhor ter sempre à mão três litros e meio de água ao dia por pessoa, contando uma preparação para três a sete dias.

Supermercado vazio no centro de Madri - Javier Barbancho/Reuters - Javier Barbancho/Reuters
Supermercado vazio no centro de Madri
Imagem: Javier Barbancho/Reuters

Até aí, básico. Mas, além de água, enlatados com pouco sal (para não dar muita sede) e outras comidas que demoram para estragar, Beach diz que não abre mão de chocolate e uísque em seu kit-desastre.

Isso tem tudo a ver com o ponto central da abordagem dele: é preciso sentir-se bem e resgatar o máximo de conforto possível, mesmo em uma situação de desespero. Não, o professor não ensina que "pensar positivo" vai proteger sua casa de um deslizamento de terra, nem que comer um chocolatinho e beber um pouco de uísque depois de ter o telhado arrancado em um furacão vão tornar a despesa do conserto menos dolorida. Mas, pelo menos, podem ajudar a conter o desespero que nos faz tomar decisões irracionais que podem piorar a situação.

Atenção plena

No fórum de discussões da turma, uma aluna que mora na Califórnia propôs um debate sobre por que não costumamos nos preparar para um desastre. Entre os motivos apontados, está a tendência humana de desacreditar ou minimizar avisos de perigo. É o chamado viés de normalidade, ou "efeito avestruz", em referência ao animal que enfia a cabeça na terra e não percebe o que está acontecendo à sua volta.

Treinar a atenção e a visão periférica (literal e figurativamente) é outro ponto essencial do curso de Beach. Se algum desavisado cair direto nas aulas sobre attitude and awareness (em tradução livre, é algo como a atitude com que você encara o fato e a atenção ao que está ocorrendo à sua volta), pode pensar que está assistindo a um curso de mindfulness.

O professor de enfermagem fala sobre apreciar pequenas alegrias em meio ao caos, mas também sobre treinar seus outros quatro sentidos — que acabam sendo eclipsados pela predominância da visão no dia a dia. "Lembro de acampar algumas vezes em parques aqui da região e levantar no meio da noite para andar pelo campo por alguns momentos. Eu me lembro de ver uma lua cheia e o campo coberto de geada. Preciso dizer, foi uma das coisas mais lindas que eu já vi", conta ele em uma das aulas.

As dicas envolvem prestar atenção aos cheiros e aos sons à sua volta. Treinar o cérebro para perceber como o ar tem um odor diferente no inverno ou no verão, como os sons no meio do mato também são ricos em mensagens que você pode usar, inclusive, para se proteger. Saber reconhecer o barulho de água corrente à distância pode, sim, ser questão de vida ou morte. Sentir o cheiro de uma árvore frutífera pode te apontar o caminho do alimento.

Você saberia localizar um mamão de longe, pelo cheiro? - iStock - iStock
Você saberia localizar um mamão de longe, pelo cheiro?
Imagem: iStock

Em meio a centenas de comentários com links para os trabalhos do curso, uma das mensagens chama atenção. "Este curso me ensinou muito, mas fico especialmente grata à seção 'awareness'. Eu estou praticando todos os dias. Hoje, consegui encontrar uma rosa só pelo cheiro. E eu sei que as coisas são como são", escreveu uma aluna.

Aceitar que as coisas "são como são" também é parte de como encará-las, frisa o professor diversas vezes. Mas isso não significa que não seja preciso agir.

Decida antes para não decidir errado

Tomar uma decisão difícil em um momento de estresse não é o caminho mais indicado. E isso fica bem claro quando Beach traz cenários catastróficos — em que cidades inteiras ficam sem energia elétrica, sem comunicação e sem água potável. Ele afirma que é plausível sempre estar preparado para ficar trancado em casa, sem acesso a água, comida ou eletricidade por sete dias.

Em nenhum momento do curso o professor defende que todos deveríamos virar sobrevivencialistas. Muito pelo contrário. "Muitos de nós não temos tempo, dinheiro ou energia para levar as coisas tão longe assim. Se você estiver indo nessa direção e estiver paranoico nesse nível sobre o que pode ou não acontecer, parabéns, você é um prepper. Essas aulas não são para você", avisa. Prepper não tem exatamente uma palavra equivalente em português, e fica inclusive mais fácil imaginar seu significado no contexto norte-americano. Sabe aquele clichê do machão que tem meses de comida estocada e todo tipo de faca ou ferramenta para caça? Esse é um prepper. Ou sobrevivencialista.

Considerando que você seja um dos poucos a se preparar (com sensatez) para ficar sem serviços como água e energia por alguns dias, pode ser que precise ajudar vizinhos, amigos ou, dependendo da gravidade da situação, estranhos. Beach sugere pensar nisso de cabeça fria, para não precisar tomar essas decisões no calor do momento (e gerar ainda mais estresse desnecessário).

A situação pode ficar grave a ponto de você precisar lidar com ladrões ou outros perigos — pode ser um animal, por exemplo —, e há módulos no curso para aprender os melhores tipos de faca para cada uso, como uma lanterna pode servir de arma, entre outras dicas de segurança. Mas Beach lembra que a vida real não costuma ser igual aos filmes. "Se decidir lutar, lute 100%. Se decidir se esconder, esconda-se a ponto de nem estar presente", diz ele.

E, para ter força para construir uma cabana na floresta, fazer fogo, defender-se de um invasor ou resgatar alguém, você precisa estar totalmente focado e presente. Sem distrações. Com tanta coisa fora de seu controle durante um desastre, não gastar energia com aquelas que estão fora das suas mãos não é papo de positividade tóxica. É questão de sobrevivência. "O que quer que você faça, faça com a intensidade do sol", resume o professor, parafraseando um instrutor de artes marciais.