Família faz 'vaquinha funerária' para custear enterro em Florianópolis
Uma caixa de ferramentas cheia. Dois frascos de perfume pela metade. Um ferro de passar roupa antigo. Uma garrafa térmica de 2,5 litros para tererê. E alguns itens menores, como: alicate, pendrive e ursinho aromatizante para carro. A cada vasculhada no interior do VW Gol 1997, bordô, Marcos Fernando Rabelo de Moura Brasil,45, surgia com um objeto de seu assassinado irmão mais novo, José Antônio Rabelo de Moura Brasil, 39, para dispor na pilha que vinha formando no concreto do pátio da 7ª Delegacia de Polícia de Florianópolis, localizada no bairro de Canasvieiras, no norte da ilha.
Enquanto ele remexia nos pertences do defunto, uma policial loira, na faixa dos 50 anos, circundava o veículo anotando tudo que ele retirava dali de dentro numa prancheta. A dianteira do carro estava cravejada de balas. Ambos usavam luvas descartáveis brancas, com medo de atrapalhar a perícia que o carro sofreria mais tarde naquela mesma quarta-feira (17). Ele achou uma sacola cheia de remédios de uso cotidiano, como Dorflex, tirou o torso de dentro do veículo e a mostrou para a policial, que meneou a cabeça disse: "Melhor deixar aí."
Marcos revirou os bancos da frente incessantemente: nada. Adriana Pereira dos Santos, 36 — mãe do filho de José e ex-namorada dele —, que observava tudo em silêncio, recostada contra seu próprio carro, perguntou: "Olhou embaixo do banco? Ele sempre deixava embaixo do banco." Mas ele respondeu que não, a carteira de José não estava lá.
Marcos olhou para a oficial e pediu: "Posso olhar mais um pouco? Só pra não ficar com aquela coisa na cabeça de 'poxa, não olhei ali.'" Ela assentiu. Logo então abriram o porta malas revelando uma gigantesca caixa de som e uma cesta com um emaranhado de fios elétricos que José usava em seu serviço como instalador de placas solares. No banco de trás, Marcos só encontrou uma manta laranja, que preferiu não levar, e o colchão amarelado, motivo pelo qual José saiu de casa e terminou baleado numa favela de Florianópolis.
Sonhos interditados
Natural de Campo Grande, José era um homem de proporções fartas, tinha 1,97m e 120 kg. Trabalhava com instalação de placas solares e, noutros momentos da vida, como pizzaiolo. Aos 35, mudara-se para Olímpia (SP) e lá permanecera por quatro anos, até que, sem perspectiva empregatícia, recebeu um convite de um casal de amigos para se mudar para cidade dos seus sonhos e trabalhar numa pizzaria.
Com o carro que comprou no nome de uma ex-cônjuge de São Paulo, José embrulhou seus objetos mais importantes, se despediu de antigos amigos e da namorada daquele momento e pegou estrada, chegando em Florianópolis na tarde de quinta-feira (11).
O primeiro e único dia na capital catarinense não poderia ter sido melhor. Sua mãe, Marlene Rabelo de Moura Brasil, 67, conta que ele sonhava com a cidade desde pequeno, quando a viu em algum programa de televisão.
O primeiro encanto foi com a construção silábica do nome, depois com as imagens de praias, por fim, já adulto, fez sua primeira visita ao município, a trabalho. Era apaixonado por praia — algo que não existe nem em Campo Grande e nem em Olímpia. Por isso, assim que chegou para morar em Florianópolis, foi direto para a praia dos Ingleses, como relatou em seu perfil no Instagram. Chegou na casa do casal amigo que o chamou, onde residiria temporariamente, e percebeu que não teria colchão para dormir.
O casal pediu que sua filha, que mora em outra residência, separasse o colchão para o amigo, que teria de ir lá buscá-lo. Assim, às 22h, José saiu da casa, embarcou no carro e foi apanhar o objeto. Na volta, adentrou a Servidão Braulina Machado, na favela Papaquara, conflagrada pela facção PGC (Primeiro Grupo Catarinense), que monopoliza o crime em Santa Catarina. O carro foi alvejado por armas curtas. Dos inúmeros tiros, somente um atingiu José, bem no coração. Saiu do carro cambaleando e caiu frio na calçada.
Vaquinha para o funeral
A polícia ainda não consegue afirmar nada além do que foi descrito. Tudo que a delegada Salete Mariano pôde explicar é que, em Florianópolis, se comete assassinato quase sempre com arma curta, como no caso de José. Para a família, ou ele se perdeu no GPS ou ele parou para comprar cigarro. De qualquer forma, por ser uma área conflagrada, a hipótese mais plausível é a de que tenha sido confundido pelos traficantes.
Dirigia um carro antigo, de vidro fumê, com placa de São Paulo, terra da única facção rival ao PGC, o PCC. No contexto criminal de Florianópolis, simplesmente ser de São Paulo é motivo para suspeição.
A primeira coisa que a família fez ao saber da morte foi abrir uma vaquinha online para custear o translado do falecido José de Florianópolis para Campo Grande. Marlene teve a ideia junto de Adriana, que sempre nutriu uma ótima relação com a família do ex, levando o filho para visitá-los semanalmente.
A meta de arrecadação seria R$ 20 mil, definiram eles. De acordo com Marcos, o valor não foi muito bem calculado. Foi o que chutaram que bancaria a viagem para resgatar o corpo, o translado, o caixão e a jazida. Tinham só até quarta-feira (17) para retirar o corpo do IML, então estipularam o financiamento coletivo para até terça-feira (16).
Começou então o planejamento. A família não tinha muito dinheiro, Marlene era viúva do pai de seus quatro filhos, mas se sustentava trabalhando no setor administrativo de um posto de saúde. Os filhos todos são proletários independentes financeiramente, mas sem bonança. Ainda assim, alguns familiares ajudaram com pequenas quantias.
Ligaram para duas empresas de translado -- uma de Campo Grande e uma de Florianópolis. Na primeira, cobravam R$ 6 mil para o transporte; na segunda, R$ 10 mil.
O desespero batia, pois temiam o que poderia ocorrer com José caso o tempo expirasse. Na segunda-feira, quando pegaram as 17 horas de estrada que separam Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, perceberam que o dinheiro da vaquinha não seria suficiente. Ficaram numa pousada de Canasvieiras, e quando amanheceu terça-feira, já tinham certeza: teriam de enterrar o familiar assassinado em Florianópolis.
Jazigo provisório
Assim começou uma odisséia que se iniciou às sete da manhã no IML, quando liberaram o corpo, e terminou às quatro da tarde no cemitério São Cristóvão, em Coqueiros, região continental da cidade.
"Ligamos para todos os cemitérios e só este tinha uma única vaga. Era a última gaveta disponível, a D2", relembra Marcos.
Na funerária, foram aconselhados a não revelar que vinham de fora, pois os cemitérios não estariam enterrando quem não reside na cidade. Seguiram o aconselhamento e disseram só que precisavam do espaço. Saíram de lá enquanto o buraco era cimentado; não deixaram nenhuma identificação na gaveta.
Marlene tem até quatro anos para tirar a ossada do filho de lá, para desocupar o espaço. Quando essa hora chegar, ela irá cremar seus restos e jogar as cinzas na capital praiana mesmo. "Deus sabe o que faz, ele nasceu pra morrer aqui. Seria a vontade dele. E aqui todo mundo acolheu a gente. A gente teve muita ajuda aqui. Então as coisas dele a gente doa aqui."
O dinheiro do financiamento terminou em 1725 reais; até serviu para ajudar parte dos gastos do enterro, mas não bastou para cobrir custos de estadia, alimentação e viagem. Depois de toda a volta para enterrar José, foram à delegacia, onde Marlene ouviu que estava tudo no começo e que a área era, de fato, conflagrada. De pertences junto ao corpo dele, a polícia só recuperou só o celular, a carteira de trabalho e trinta reais e nada da carteira, que não seria encontrada no carro, no IML ou na funerária.
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