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Por que é importante reconhecer o luto pelas 'pequenas' perdas na pandemia

Mulher olhando pela janela durante isolamento social causado pela pandemia do novo coronavírus - Getty Images
Mulher olhando pela janela durante isolamento social causado pela pandemia do novo coronavírus Imagem: Getty Images

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

24/03/2021 04h00

A festa de casamento que ficou para o ano que vem, a mudança de carreira que não veio, o relacionamento que terminou em meio ao convívio extremo. Mesmo quem não perdeu um parente, um amigo ou um colega para o novo coronavírus sofreu alguma perda nesse último ano. No mínimo, perdeu a rotina, a vida como era antes.

Com quase 300 mil mortes no Brasil e ultrapassando as 2,5 milhões no mundo, quem não se infectou ou não lidou com a morte de alguém querido pode se considerar privilegiado. Mas isso não significa que essas pessoas não estejam lidando com lutos profundos.

Reconhecer esse processo pelo nome, luto, é essencial para validar e elaborar os sentimentos que vêm com ele, mesmo que isso não signifique se tornar apático diante da situação e nem mesmo aceitá-la como normal. É o que dizem duas psicólogas especialistas em luto, entrevistadas por TAB sobre a importância de nomear nossas perdas durante a pandemia e como conviver com elas de forma saudável.

Luto não é só quando morre alguém? Não. "O processo de luto é uma possibilidade de elaboração de uma perda significativa. Pode ser perda por morte, pode ser perda de uma situação importante da vida, pode ser um adoecimento", exemplifica Maria Julia Kovács, professora sênior do Instituto de Psicologia da USP. A psicóloga ressalta que o luto em si não é uma doença. Ele pode, sim, desencadear um processo de depressão, ansiedade ou outros quadros que exigem acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, mas cada pessoa vai lidar com ele de uma maneira diferente, dependendo do contexto em que está inserida e de sua saúde mental no momento da perda, entre outros fatores.

Mas por que dar nome? Pode até parecer que o sentimento de perda vai ser o mesmo, independente de como a gente decidir chamá-lo, né? Mas especialistas defendem que reconhecer esse processo e nomeá-lo é importante. "Na medida em que nomeamos e falamos a respeito do que estamos sentindo, dizer 'puxa, está tão difícil', damos espaço para a construção de uma narrativa a respeito", afirma a psicóloga Luciana Mazorra, cofundadora do 4 Estações Instituto de Psicologia, especializado em questões de formação e rompimento de vínculos. Isso ajuda, segundo a especialista, a lidar com a situação e, possivelmente, até levar algo de positivo dessas perdas.

Positivo? Como assim? Calma, a ideia não é romantizar a pandemia e nem dizer que ela vai nos fazer bem. Mas parte importante de lidar com perdas é perceber as ferramentas que temos para isso, e até mesmo criar novas formas de enfrentar momentos difíceis. "Toda situação de perda também nos dá a chance de descobrir recursos para enfrentá-la. Descobrir que damos conta poderia ser um ganho. Isso seria um enfrentamento resiliente dessa situação", explica Mazorra. Neste momento, de nada adianta dizer ou pensar "calma, isso vai passar", ressalta Kovács, já que por enquanto não há previsão de quando a pandemia estará sob controle. O que dá para fazer é encontrar a melhor forma de viver neste momento difícil, sem negá-lo. "É preciso saber o que é importante para cada pessoa conseguir tocar a vida com saúde física, com bem-estar, com objetivos, com metas, com alegrias, e também com tristezas. Temos que ver como cada pessoa pode estabelecer o seu modo de viver", afirma a professora da USP.

Quais lutos estamos vivendo? Esses processos também são bastante individuais, mas, em geral, as especialistas citam alguns lutos comuns do último ano. Perda de emprego, de condição financeira, de relacionamentos, de planos concretos como viagens ou comemorações, da sensação de controle, da liberdade de ir e vir sem medo, da rotina... "As pessoas têm demandas diversas, coisas que são importantíssimas nas vidas delas e de que tiveram que abrir mão. Esse tipo de situação já era caracterizada como luto. A perda de uma situação de normalidade, do mundo presumido, daquilo que a gente conhece, daquilo que é habitual é luto. Sempre foi", frisa Kovács. Isso tudo além, é claro, da perda de saúde para quem adoeceu, e da perda de pessoas queridas. Calcula-se que, para cada pessoa que morre, há de seis a 10 enlutados. São, portanto, em torno de dois milhões de brasileiros vivenciando esse processo no último ano. "Mesmo você não tendo perdido alguém próximo, essa quantidade incalculável de mortes que a nossa psique não aguenta suportar também leva a uma situação de luto. É uma sensação de mal-estar, uma sensação de vulnerabilidade", completa.

Luto solitário. Seja qual for a dimensão da perda, os rituais para lidar com ela são essenciais. Neste momento em que o distanciamento físico se impõe, não dá para aparecer na casa do amigo para chorar o fim de um relacionamento, não dá para sair e tomar um cafezinho ou fazer networking depois de ser demitido, não dá para levar uma sopinha e passar um tempo com aquela pessoa querida que adoeceu. "Quem está de luto hoje está lidando com todas as outras perdas concomitantes e, em geral, relata mais solidão", conta Mazorra. "Nosso papel, como membros de uma sociedade, é de tentar dar o apoio possível para aquele que está sofrendo a perda. Você pode ligar, se oferecer para ajudar em algo, levar um bolo, flores, ou mandar entregar", sugere.

O quanto é "normal" ter saudade? Em meados de março, os Stories do Instagram ficaram repletos de lembranças das últimas coisas que fizemos antes de a vida virar de cabeça para baixo. Mas é saudável revisitar essas memórias? Será que não faz sentido deixá-las para trás e encarar a nova realidade? Sim, e sim, dizem as psicólogas. O processo de lidar com essas perdas vai ser diferente para cada um, e sentir saudade e compartilhá-la é natural. Mazorra ressalta, inclusive, que há algumas perdas que não devemos encarar como definitivas, e que sentir falta delas é necessário. "Eu acho bom que a gente não aceite tão facilmente isso", diz ela, sobre o contato social, principalmente, "Que, de alguma forma, a gente ainda sinta saudade daquele momento em que podia simplesmente encontrar alguém na rua e dar um abraço."