Regiões mais violentas de Fortaleza hoje enterram seus mortos por covid-19
Criado numa família de artesãs, Evaldo Rodrigues da Silva, 51, não conseguiu herdar o dom da mãe e da irmã em montar coroas de flores ou esculpir peças de gesso para vender na entrada no Cemitério Público Municipal do Bom Jardim, o maior de Fortaleza. Todas as manhãs, ele monta sua mini-tenda na bicicleta, em meio a carros de funerárias que não param de chegar.
Evaldo ainda está aprendendo o ofício. Tudo que vende é comprado e repassado a um preço que considera justo. Nem sempre tem retorno financeiro. A cruz custa R$ 10. Os jarros são R$ 5 e as flores variam de R$ 1,50 a R$ 2.
Evaldo tem um jeito retraído e, ao mesmo tempo, doce ao falar. "É um cemitério de pessoas simples. Tem gente que não tem condição de comprar nada."
Ele esteve oito meses afastado, após conselho do administrador do cemitério, com quem tinha amizade. Voltou há dez dias, agora sem a presença do amigo, que faleceu em março.
Evaldo olha com atenção a movimentação de familiares das vítimas sepultadas na manhã daquele dia. Contabilizou sete nas últimas três horas, sendo duas por covid-19 ou suspeita da doença. Ainda tem lembranças do pico da primeira onda, razão do afastamento anterior. "Vi muita gente morrer por essa doença. A pandemia não escolhe quem sobrevive."
De acordo com a Secretaria Municipal da Gestão Regional (Seger), foram criados 4.700 novos espaços, entre ossuários e jazigos no Cemitério Municipal do Bom Jardim desde o início da pandemia. O dia com o maior registro de sepultamentos aconteceu em 8 de maio de 2020, com 49 enterros. Em 2021, contudo, os primeiros vinte dias de março registraram mais sepultamentos que janeiro e fevereiro juntos: foram 105, ante 93.
A equipe de coveiros fica de prontidão, próxima ao portão. Do lado de fora, familiares conversam e choram enquanto o carro da funerária não chega. Na pandemia, apenas dez pessoas podem acompanhar cada enterro. Dos três cortejos daquela manhã acompanhados pela reportagem do TAB, apenas um atingiu a capacidade máxima de acompanhantes.
Um carro de funerária estaciona. Algumas pessoas se aproximam para saber o nome do próximo a ser sepultado. Conversam com o motorista e descobrem que não se trata do familiar que morreu. Em seguida, um dos coveiros pergunta a causa da morte: "É covid?". Não. Tratava-se de uma vítima de agressão, morta por espancamento.
O Cemitério Municipal do Bom Jardim se tornou o principal destino final da população mais pobre, vítima da covid-19 em Fortaleza. É o único que ainda atende de forma espontânea; 100% das covas são públicas.
Histórico de choro e dor
Desde o início da pandemia, Grande Bom Jardim, que engloba os bairros Bom Jardim, Canindezinho, Granja Lisboa, Granja Portugal e Siqueira, contabiliza 538 mortes e 8.352 infectados pelo novo coronavírus, de acordo com o último boletim epidemiológico da secretaria municipal de Saúde, divulgado em 16 de abril. A região concentra mais vítimas que os municípios de Juazeiro do Norte (411), Maracanaú (524) e Sobral (530).
Três dos 10 bairros mais violentos da capital cearense estão no Grande Bom Jardim. A região, que possui dramático histórico de mortes violentas, entre ações policiais e briga de facções, hoje enterra suas centenas de mortos por covid-19. Esta é a região onde a travesti Dandara dos Santos, 42, foi apedrejada e morta a tiros, em 15 de fevereiro de 2017. O crime foi gravado e compartilhado nas redes sociais, gerando repercussão mundial.
A poucos metros da rua que receberá o nome de Dandara, a agente comunitária de saúde Nila Oliveira, 48, orienta a população sobre os riscos de contaminação pelo vírus. Aborda quem está na calçada sem máscara e pede para que se mantenha distanciamento social. Até quando está de folga, Nila se sente na obrigação de orientar. "Muitos negam a existência da doença. Dizem que é uma gripe como outra qualquer, mas a gente sabe que não é assim."
O cansaço é visível. Nila acaba de receber uma mensagem de um dos sobrinhos adolescentes, confirmando que está com a doença. Até agora são seis familiares acometidos. Dois estão internados, dentre eles o cunhado, que se encontra na UTI com graves problemas renais. "A gente não tem o que fazer, a não ser rezar", desabafa. Cerca de uma semana depois, o cunhado faleceu.
No posto de saúde Dom Almeida Lustosa, no bairro Granja Lisboa, onde Nila trabalha, são atendidos diariamente entre 100 e 150 pacientes com sintomas de covid-19. A situação podia ser ainda pior, se uma parcela de moradores não tivesse medo de procurar atendimento nas unidades de saúde. Como os resultados do exame RT-PCR demoram até sete dias para sair, há dificuldade para monitorar a população infectada. Os 18 agentes fazem busca ativa nos domicílios das 20 mil famílias da área. "Muitos só fazem o isolamento após o resultado, quando já contaminaram todos da casa", lamenta.
Março foi o pior mês da pandemia no Grande Bom Jardim. A morte e o sofrimento foram constantes. Idosos foram os mais afetados, muitas vezes falecendo em casa, seja por receio de a família em buscar atendimento médico ou por demora na chegada das ambulâncias. Maria Vieira de Sousa, 82, que tinha doença prévia, foi uma das vítimas. Levada às pressas para a UPA do Bom Jardim, no carro particular de um dos vizinhos, faleceu após 20 dias de internação no Hospital de Messejana.
Maria Oliveira do Nascimento, 71, não consegue abrir a porta do quarto da prima. As duas, além do filho Airton Oliveira, 40, moravam juntas havia 27 anos — o coração ainda não se acostumou com a separação. "Triste demais. A gente brigava, mas se amava. Eu sabia que, se ela fosse para o hospital, não iria mais voltar", diz a mulher que tomaria a segunda dose da vacina naquele dia.
O sofrimento só não é maior que o de Airton. Ele ainda não chorou. Pede apenas que a mãe procure uma casa no interior, porque não suporta a ausência da tia que também tinha como mãe. "Ele não quis ir para o sepultamento. Foi ele que a reconheceu no saco, com a mesma roupa que havia saído de casa duas semanas atrás."
Entre a cruz e a espada
A reportagem de TAB foi recebida com latidos em um dos galpões da Rede dos Catadores do Ceará, em Siqueira. Quando Jussara* finalmente chegou ao portão, o cachorro Bolsonaro foi se esconder entre as roupas e papelões espalhados pelo local.
Jussara trabalhava em uma comunidade vizinha, mas teve de sair de lá depois de ser ameaçada de morte pelo filho da melhor amiga, que morreu de covid-19 em junho de 2020.
O atrito começou em setembro, quando saiu o auxílio-catador de Jussara. A amiga também tinha direito a ele, mas, como havia falecido, apenas ela passou a receber R$ 561, pagos pelo governo estadual. "Ainda dei a ele a primeira parcela para não apanhar", afirma. A vida virou um inferno: como morava em Siqueira, área comandada pela facção rival a do jovem, a catadora era vista como inimiga. Foi obrigada a procurar outro lugar onde trabalhar — agora lida com reciclagem mais perto de casa.
Não tem um dia que Jussara não se lembre da amiga. Ela sempre brincava que não adoecia. No último dia em que foi trabalhar, reafirmou: "Eu não adoeço!". Quarenta e oito horas depois, foi levada à UPA de Bom Jardim com sintomas de covid-19, e, em seguida, transferida para o hospital Leonardo Da Vinci. De lá, seguiu para o Hospital Geral de Fortaleza. Faleceu depois de 15 dias intubada.
Negação e medo
Enquanto comem um lanche, Vagna Oliveira Barroso, 45, e Décio da Silva, 47, aguardam notícias de Lourdes Oliveira Barroso, 72, encostados em uma das grades que ficam do lado de fora da UPA do Bom Jardim. Com falta de ar, dor no estômago e tontura, a idosa foi trazida pelos parentes naquela manhã com suspeita de covid-19. "A gente trouxe pra cá achando que, por ser maior, tinha menos movimento", explica Vagna.
Ali ao lado, durante a entrevista, uma senhora que se dizia "temente a Deus" falava alto e negava a existência da pandemia. Após alguns minutos, o silêncio. Uma médica abriu a porta e avisou que o parente da religiosa havia testado positivo para a doença e teria que ficar internado. "O que é isso?", clamava a mulher, inconformada.
Em maio de 2020, ainda na primeira onda, contêineres frigoríficos foram instalados no local para armazenar os corpos das vítimas. A UPA do Bom Jardim também é uma das três unidades de saúde que possuem usinas para produção de oxigênio em Fortaleza.
Como forma de frear a contaminação, o Comitê Popular de Enfrentamento à Covid-19 no Grande Bom Jardim realizou um mapeamento comunitário, nos cinco bairros da região, entre os dias 27 de março e 1º de abril, fazendo uma leitura dos pontos de aglomeração e de incidência de casos, além do contingente de assentamentos precários. Segundo o relatório, Granja Lisboa, Granja Portugal e Bom Jardim estão entre os cinco com maior mortalidade em Fortaleza, alcançando, nas últimas semanas, mais vítimas e contaminações que no pico da primeira onda, ocorrida entre os meses de abril e maio de 2020.
O estudo ainda aponta que "existe uma correlação entre IDH, espalhamento do novo coronavírus e mortes pela covid-19". A pobreza não vem só.
*nome trocado
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