A via crúcis em busca de atendimento nas UPAs do Grande Recife
Não cabe ninguém. Na porta das UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) do Grande Recife, são os próprios pacientes ou acompanhantes que avisam da demora no atendimento e da impossibilidade de entrar.
O recado é passado de boca em boca na UPA de Nova Descoberta, a única da zona norte do Recife, região populosa rodeada de comunidades. Perto do meio-dia de segunda-feira (24), a calçada estava lotada de pessoas sentindo dores de cabeça e no corpo. Algumas vieram com febre e diarreia.
A maioria que ali esperava apresentava sintomas de covid-19. Acompanhantes aguardavam o retorno de algum parente ou amigo que já tinha conseguido entrar na UPA e não saía.
A demora para ser atendido na rede pública de saúde é corriqueira, mas aquilo era incomum. O motivo: algumas UPAs da cidade e do Grande Recife dão "prioridade a casos graves", após uma triagem que mede pressão e nível de saturação, e mandam para casa quem não chega passando muito mal.
Moradores de outros bairros e até mesmo cidades vizinhas se deslocaram até Nova Descoberta para tentar uma consulta. A estudante de enfermagem Carine Souza, 23, fez essa peregrinação com uma amiga. Saíram cedo de Jaboatão dos Guararapes e percorreram 26 quilômetros até Olinda — por telefone, foram informadas de que a UPA Gregório Lourenço Bezerra estava aberta. Encontraram-na de portas fechadas.
Frustradas depois de percorrerem mais 11 quilômetros, desceram do ônibus incrédulas. "Com certeza aqui também não estão atendendo, né?", questionou Carine, quando avistou a quantidade de gente tentando encontrar uma sombra de árvore para fugir do sol forte.
Uma semana antes, Carine havia feito o mesmo périplo, mas dessa vez com o pai, Cléber José de Souza. Antes de conseguir dar entrada em um hospital, o porteiro de 49 anos, obeso, diabético e hipertenso, esteve em quatro UPAs do Grande Recife. Tudo lotado.
No início, Cléber percebeu dor de cabeça, depois febre. Em seguida veio o cansaço e tosse com sangue. Correu procurar ajuda médica. Foram dois dias inteiros em busca de atendimento até que, depois de muitas tentativas, horas de espera e bate-boca na recepção da UPA de Prazeres, em Jaboatão dos Guararapes, a estudante conseguiu que o pai fosse atendido.
Enquanto aguardava notícias dele, Carine viu outras pessoas se desesperarem ou voltarem para casa — alguns, segundo ela, com sinais visíveis de cansaço e piora dos sintomas. Cléber, que apresentava baixo nível de saturação (problemas para respirar), foi direto para a UTI, onde precisou de oxigênio. Passou três dias internado na UPA e em seguida foi transferido para um hospital da região, de onde teve alta nesta quinta-feira (27).
A amiga de Carine, naquela segunda-feira, não conseguiu ser atendida. Voltaram para a casa.
Vigilante como porteiro
A reportagem do TAB seguiu para Olinda, também na Região Metropolitana, onde Carine e a amiga tinham ido mais cedo.
Apesar de não ter tanta gente na calçada, não havia atendimento, e quem informava era o vigilante do local. O plantão estava fechado por causa do alto número de internados. Quem insistia ainda passava pela triagem, fazia a aferição da pressão arterial e só. A enfermeira indicava outra UPA, em Paulista, cidade vizinha, ou algum hospital da região.
A dona de casa Eliane Sales, 39, estava indignada e saiu de lá discutindo com o vigilante. Seu semblante era um misto de revolta, cansaço e mal-estar. Há dois dias não dormia bem, tinha febre e muitas dores no corpo.
Sem conseguir respirar direito, voltou ao local pela terceira vez desde que começou a se sentir mal. Não conseguiu ver a cara do médico em nenhuma das tentativas. Sem disposição e temerosa, Eliane resolveu ir para casa. Ela mora com a mãe idosa em como não tem certeza se contraiu covid-19, tinha que se isolar em um quarto para não ter contato com ninguém, apenas com o marido, que acompanhava a esposa e saiu de lá de braços dados com ela — Eliane precisava se apoiar em alguém para suportar as dores. Desistiu de buscar atendimento. "Vou tentar melhorar em casa."
Em frente à UPA Gregório Lourenço Bezerra há bancos debaixo de uma tenda para diminuir o cansaço de quem espera do lado de fora. Mas, entre os que estavam ali, a fadiga era resultado da quantidade de vezes que já tinham procurado atendimento, sem sucesso.
O professor Nilton Brasil, 44, dobrava a insistência. Ele conversava em voz alta com os que aguardavam atendimento, e fazia vídeos em frente à UPA narrando o que estava acontecendo.
Reclamava bastante e pedia respostas urgentes das autoridades de saúde de Pernambuco. Com mãos e pés inchados, conta que já havia tentado cinco vezes passar com um médico, desde a semana anterior. Encontrou plantão fechado todas as vezes, de manhã cedo e à noite, na esperança de o plantão abrir.
Ele chegou a buscar atendimento na UPA de Paulista, mas só conseguiu passar pela triagem e ouvir da assistente social que ali não havia disponibilidade. Enquanto conversava com o TAB, mostrava os vídeos narrando a peregrinação — como não havia conseguido atestado médico, passou todo o tempo de convalescença trabalhando em sala de aula, numa escola da rede privada.
Para reduzir as dores, passou a tomar prednisolona (anti-inflamatório) à revelia. "Estou fazendo algo muito errado: me automedicando porque não consegui ser visto por um médico", desabafou. Nilton desconfiava que era dengue, por causa das manchas pelo corpo e das dores nas articulações. Até a publicação desta reportagem, Nilton havia sido internado na UTI, ainda sem diagnóstico.
As UPAs não estão fazendo exames para detecção de covid-19 em pacientes ambulatoriais — pelo menos é o que anunciam os cartazes afixados na porta de vidro na UPA da Caxangá, uma das mais movimentadas do Recife, onde o TAB também esteve.
A restrição ocorre quando Pernambuco registra 91% de ocupação de leitos na rede pública. Os dados foram atualizados pela Secretaria Estadual de Saúde nesta sexta-feira (27). Agora, são 473.326 infectados e 15.657 mortes devido à doença.
A secretaria de Saúde de Pernambuco explicou, por meio de nota, que os 15 serviços estaduais estão funcionando normalmente, sem restrições de horário, e que eles não recusam atendimento aos usuários.
A nota confirma que as UPAs priorizam os casos graves, utilizando o sistema de classificação de risco. Pacientes passam por uma avaliação da gravidade. Em alguns casos, quando são considerados não graves, ele é orientado a procurar um serviço de saúde de baixa complexidade.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.