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'Aqui é a Índia': rua do ouro empobrece do dia para a noite em São Paulo

Sol tinge de dourado a calçamento de pedra portuguesa da rua Barão de Paranapiacaba, no centro de São Paulo - Rodrigo Bertolotto/UOL
Sol tinge de dourado a calçamento de pedra portuguesa da rua Barão de Paranapiacaba, no centro de São Paulo Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB, em São Paulo

11/04/2022 04h01

Existem áreas em São Paulo que mudam de um ano para o outro, mas há ruas que trocam totalmente de identidade dentro do mesmo dia. Quando os 61 sinos da Catedral da Sé anunciam as 18h, uma transmutação se inicia em uma via de pedestres perto dali, a Barão de Paranapiacaba: o ouro nas vitrines é coberto pelo aço das portas, e os compradores de joia dão lugar a moradores de rua.

"Ficava repleto ao meio-dia com as advogadas que vinham aos tribunais do centro. Os guias de turismo traziam ônibus inteiros de turistas para dentro das lojas. Hoje, aqui é a Índia. Com tanta pobreza na praça da Sé e no entorno, quem vai querer vir?", queixa-se Dilberto Ribas, presidente da Ajob, associação criada pelos joalheiros do quarteirão que é mais conhecido como "a rua do ouro".

A partir da década de 1950, a travessa começou a concentrar as joalherias do centro, e o processo se acelerou em 1976, quando o então prefeito Olavo Setúbal transformou dezenas de ruas centrais em áreas exclusivas para pedestres, incluindo a Barão de Paranapiacaba.

O temor de roubos reforçou a aglomeração de joalheiros, protegidos por câmeras, alarmes e policiais à paisana durante as 24 horas. Tanta segurança acabou atraindo também gente que busca, embaixo das marquises, um canto tranquilo no meio do dormitório a céu aberto que é o centro paulistano hoje.

Um deles é "seu Neco", 61, que prefere não falar nome completo, aparecer em foto e dar sua procedência para que os parentes no norte não saibam que dorme na rua. Ele estaciona seu carreto por volta das 20h embaixo de um toldo de joalheria e puxa sua "cama dobrável": uma caixa de papelão que um dia envolveu uma geladeira. Ele transporta frutas no Mercado Municipal. Quando escurece, encosta seu cansaço ali. "O vigia me conhece, sabe que não faço zoeira e deixo tudo limpinho", conta.

Universos na mesma calçada

De dia, os lápis e os pincéis estão dentro de estojos multicoloridos. De noite, eles pintam os rostos de quem vive de alugar o corpo pelas calçadas de lá. A rua Marquês de Itu se especializou no comércio de materiais para artes plásticas, mas, quando se apaga o sol e se acendem os postes, ela se traveste e entra no mapa da mais tradicional área de prostituição na cidade.

Essas duas atividades da via têm um mesmo epicentro: a praça da República. O que era um ponto de encontro de filatelistas para trocar selos em 1956 se transformou em feira hippie na década seguinte e acabou como atração turística da cidade. A feira de artesanato de lá se expandiu para a Marquês de Itu, onde abriram lojas e havia aos domingos venda de molduras, telas e quadros em suas calçadas.

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A esquina das ruas Marquês Itu e Rego Freitas é um dos pontos de prostituição na região próxima à praça da República
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

"Era nosso dia de maior movimento, mas a prefeitura proibiu as barracas na calçada. Uma vez passou o rapa e jogou até quadros lindíssimos de arte sacra dentro de uma caçamba de caminhão. Foi aquela época da lei Cidade Limpa [iniciada em 2007]", diz Flávia Veiga, terceira geração com comércio artístico nessa rua -- o avô abriu uma papelaria em 1937 ali.

A prostituição chegou antes da arte. A praça da República ganhou seu estilo parisiense, com lagos artificiais e pontes, em 1905. E, já em 1918, há os primeiros registros policiais de ações contra travestis que aproveitavam a penumbra daqueles jardins para encontrar seus clientes. Apesar da repressão, elas se espalharam pelas esquinas no trecho até o Largo do Arouche e o Minhocão. É tão simbólica e histórica a presença das travestis que a estação de metrô dali abriga o Museu da Diversidade Sexual.

Os venenos da vida

"Isso aqui está um inferno. Os caras levam as tampas de ferro das calçadas, roubam a fiação, e a gente fica sem energia. E olha que a iluminação pública tinha sido melhorada no ano passado, mas agora estamos no breu", queixa-se Arnoldo Santos, comerciante há 20 anos da chamada "boca da moto", região especializada nos veículos de duas rodas que movimentam a cidade. Tudo isso porque a cracolândia mudou em meados de março para a vizinha praça Princesa Isabel.

O cruzamento da rua General Osório com a alameda Barão de Limeira era conhecido como "a esquina do veneno", ainda quando o chão era de paralelepípedo no então requintado bairro dos Campos Elísios. O que começou com três lojas nos anos 1930, dos pioneiros Felipe Carmona, Edgard Soares e Luis Latorre, hoje se multiplicou em 300 comércios, incluindo os indesejados desmanches.

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Há 20 anos como lojista na "boca da moto" em São Paulo, Arnoldo Santos reclama da proximidade da nova cracolândia, na praça Princesa Isabel
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

As fileiras de motos estacionadas para vender ou consertar no horário comercial dão lugar a dezenas de dependentes químicos circulando ou pitando seus cachimbos quando ele acaba. Em 2021, a prefeitura iniciou obras de revitalização da região, com novo calçamento, incluindo as palmeiras plantadas. A chegada dos novos vizinhos está atrapalhando os planos de comerciantes e moradores.

A primeira apreensão de crack em São Paulo aconteceu em 1990. Na virada do século, a cracolândia já era uma realidade nas proximidades da estação da Luz, degradada após a desativação da rodoviária nos anos 1980 e uma série de demolições. Em 2017, as ações policiais por lá fizeram o fluxo se mudar temporariamente para a praça Princesa Isabel. Agora está de volta à praça com um enorme monumento a Duque de Caxias, o patrono do Exército -- antes sujo apenas pelas pombas, agora pelos homens também.

Cartografia noturna

A noite possui suas regiões próprias. Uma rua trivial, por onde os vizinhos vão ao açougue ou à farmácia, pode se converter em uma zona franca dos desejos. Quando anoitece, há uma quase completa mudança de humor e de elenco. Só o mercadinho da família de imigrantes chineses atravessa as duas dimensões, vendendo detergente de dia e aguardente à noite - ambos na cor e fragrância preferida do freguês.

É a Peixoto Gomide, em seu trecho no Baixo Augusta. Há três décadas a área aglomera jovens gays que vêm de todos os quadrantes da metrópole. Quando a manhã chega, esses universos se tocam: a sarjeta acumula garrafas e os seres noturnos tentam se equilibrar parecendo que vieram de outra gravidade, enquanto pedreiros chegam apressados para erguer prédios ao redor.

ruas mutantes - Marlene Bergamo - 7.dez.2019/Folhapress - Marlene Bergamo - 7.dez.2019/Folhapress
Baile funk DZ7, em rua de comércio da favela de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo
Imagem: Marlene Bergamo - 7.dez.2019/Folhapress

A rua Ernest Renan também apresenta essa dupla personalidade. Já são 8h de sexta, e os parças e as minas desfrutam ainda do serão regado a vodca com energético, mesmo com o comércio e os serviços públicos da principal rua de Paraisópolis já abrindo suas portas. Ali acontece o fluxo da DZ7, baile funk que movimenta a economia da segunda maior favela de São Paulo. A mesma mistura de fim de festa e início de expediente acontece pelo menos dois dias por semana em Heliópolis e no Parque Novo Mundo, onde acontecem os bailes do Helipa e Marconi.

Um bairro que tem seu fuso horário particular é o Brás. Das 17h até a meia-noite, o entorno da rua Tiers fica às moscas. Mas o formigueiro humano volta na "feirinha da madrugada", com forte presença de imigrantes bolivianos vendendo o que costuraram nas oficinas vizinhas. Tudo vai se acalmando depois do almoço, quando começam a partir os ônibus com compradores de todo o Brasil.

Pingentes urbanos

Seu Neco sabe que não pode encostar muito na fachada da joalheria porque o alarme dispara. Já os novatos da rua do ouro deitam embaixo da marquise de um ponto que está para alugar. A pandemia e a alta do dólar afugentaram a freguesia, e muitas lojas fecharam. A rua, que era forte no atacado de joias, começou a depender cada vez mais do varejo.

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Carretos ficam estacionado à noite embaixo de toldos de joalherias no centro de São Paulo
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

De dia, os "puxadores", para ganhar comissão dos lojistas, disputam os casais que entram pela rua, os ourives locais copiam joias fotografadas pelos clientes nas vitrines das grifes Tiffany ou H. Stern, e comerciantes de outras cidades pedem descontos aos atacadistas, que podem chegar a 30%.

A rua Barão de Paranapiacaba começou sua fama no início do século 20, quando ali se vendiam peças e ferramentas para relojoeiros, mas as engrenagens do tempo fizeram a rua se especializar em adornos dourados e incrustados com pedras preciosas. Restam ainda poucas relojoarias entre os 130 comércios de lá. Se a rua do ouro continuará brilhando, ninguém sabe. Afinal, tudo muda do dia para a a noite.