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"O Brasil não aprende e continua se repetindo", diz diretor de "Bacurau"

Cena de "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles - Reprodução
Cena de 'Bacurau', de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles Imagem: Reprodução

Luiza Sahd

Colaboração com TAB, de Londres

16/10/2019 04h00

Desde que levou o Prêmio do Júri do Festival de Cannes, em maio de 2019, "Bacurau" não para de colher elogios e prêmios. Em agosto, pouco antes de estrear nos cinemas brasileiros, o filme de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles sagrou-se no Festival de Cinema de Munique. Foi ainda eleito o melhor filme no Festival de Lima (Peru) e no Festival de Cinema Fantástico da Catalunha, na Espanha.

Numa das recentes estreias europeias, o imponente Odeon Luxe Leicester Square, em Londres, estendeu tapete vermelho para celebrar "Bacurau" no 63º BFI London Film Festival. Os ingressos para a estreia do longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles se esgotaram dias antes da sessão — e a fila para entrar no anfiteatro quase dobrava a esquina da praça que reúne os cinemas, teatros e casas de shows mais badalados da cidade.

Durante o evento, os diretores apresentaram o longa ao lado dos atores Barbara Colen e James Turpin para uma plateia curiosa e bastante reativa às cenas mais fortes do filme.

A convite da MUBI — plataforma de streaming que adquiriu os direitos de exibição de "Bacurau" no Reino Unido — TAB conversou com os diretores sobre cultura, política, memes, militância e a sangrenta história da humanidade dentro e fora das telas.

TAB: Vocês têm andado bastante pelo mundo para divulgar "Bacurau". Nessas andanças, com públicos tão diferentes, quais foram as reações mais surpreendentes ao filme?

Juliano Dornelles: A forma como o público de outros países tem se comunicado: de uma maneira quase tão forte quanto plateias do Brasil durante as exibições. Talvez com um pouco menos peso porque, às vezes, no Brasil, as pessoas saem da sessão arrasadas, energizadas ou bem abaladas. Mas as reações do público têm sido intensas também no exterior e isso foi surpreendente pra mim.

Kleber Mendonça Filho: Principalmente porque é um filme sobre história — e cada lugar tem sua história e seus conflitos. Todos têm histórias de invasão, todos têm histórias de agressão e de guerra, então me parece que é exatamente aí que o filme pega.

Dornelles: Exatamente. Porque quando a gente vai fazer um filme, a gente não tem certeza se a história contada vai ser universal ou não — e todo mundo quer que seu filme seja universal. Temos recebido essa confirmação. Eu e Kleber mantemos as expectativas lá embaixo porque nós somos espertos. Mas aí, bum!, acontece. E é foda.

Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, na estreia de "Bacurau" em Londres - Mubi/Divulgação - Mubi/Divulgação
Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, na estreia de "Bacurau" em Londres
Imagem: Mubi/Divulgação

TAB: "Bacurau" é um filme cheio de camadas complexas de compreensão e, mesmo assim, a popularidade do longa tem sido imensa. No Twitter, o meme "Kleber Mendonça entre na minha casa (...)" já virou um clássico.


Mendonça Filho: Esse daí eu vi ao vivo. Na semana passada a pessoa olhou nos meus olhos e se colocou na lista.

TAB: Pois é, o filme parece ter furado uma bolha. Com tanta repercussão, existe alguma coisa que vocês tenham lido ou ouvido sobre "Bacurau" e tenham pensado "não é nada disso"?

Mendonça Filho: Não tenho jurisdição sobre essa área porque, quando a discussão sobre o filme se espalha nesse nível, já não pretendo dar conta de controlar as reações a ele. Se as pessoas amam ou se não gostam, para mim, tá tudo certo. Acho maravilhoso o que está acontecendo, mas não interajo muito com a reação das pessoas ao filme, a não ser que elas me perguntem, como aconteceu ontem de uma pessoa perguntar se deveria levar a mãe para assistir "Bacurau".


Dornelles: É importante que surjam opiniões contraditórias sobre o filme porque isso eleva o debate. Agora não está mais com a gente: as pessoas estão debatendo a história entre elas. Algumas coisas, por outro lado, marcam. No final de uma exibição no Rio de Janeiro, por exemplo, um jovem rapaz pegou o microfone e disse que estava muito emocionado e que queria matar alguém. Dava para ver que ele estava completamente transtornado. Nesse momento, interrompi a fala dele e disse: "vamos parar. Isso aqui é um filme e se você for matar alguém, mate nessa tela aqui". Todo mundo reagiu, aplaudiu e, aparentemente, ele arrefeceu aqueles pensamentos pesados. "Bacurau" é um desses filmes que lidam com catarse -- e a gente tá vivendo um momento catártico no Brasil. As pessoas têm sentido aturdimento, frustração e raiva. É uma mistura bem perigosa, mas, ao mesmo tempo, as pessoas estão se autorregulando e se conectando por meio do filme para falar disso. No final das contas, acho o saldo positivo.

TAB: Uma crítica frequente à "Bacurau" é a ideia de que não se deve combater violência com violência. Muita gente tem usado o mesmo argumento para criticar iniciativas como as da ativista ambiental Greta Thunberg, porque a militância dela seria agressiva demais. Qual é a visão de vocês a esse respeito?

Mendonça Filho: Não sou uma pessoa violenta. A última briga em que estive envolvido aconteceu em 1986, na escola, aqui na Inglaterra, inclusive. Acho que estamos num estágio social em que a gente deve sempre dialogar e falar sobre o que não está certo. A questão é que dizer "não" é um ato político. "Aquarius" [longa de Kleber Mendonça lançado em 2016] é sobre uma mulher que diz não. Você pode se perguntar que "não" é esse e que mulher é essa que está dando a negativa, mas a grande celeuma do filme acontece a partir do momento em que a mulher não quer fazer o que os homens querem que ela faça.

"Bacurau" é um filme que exige respeito. É um filme sobre o Nordeste porque sou pernambucano e Juliano é pernambucano. É sobre Brasil mas também é sobre momentos de invasões importantes na história da humanidade, como a Guerra do Vietnã, o Gueto de Varsóvia. Nesses momentos extremamente dramáticos da história humana -- e num filme de gênero western, aventura e ação como fizemos -- a violência faz parte do que contamos. Se, a partir disso, alguém assistir ao filme e pegar numa arma, eu tô fora. Não tem nada a ver comigo ou com o Juliano. Sobre a Greta, sobre militar com palavras veementes, isso é muito diferente de pegar uma faca ou uma bazuca e agredir alguém.

Dornelles: ? Ou com fazer um filme. São três coisas diferentes. Para mim, a ideia de fazer um trabalho de arte é se comunicar e provocar reflexões. As reações muito fora desse campo do debate não têm nada a ver com a nossa intenção.

Mendonça Flho: Fizemos um filme extremamente honesto. Por exemplo: existem tensões históricas entre o Sul, o Sudeste e o Nordeste do Brasil. Isso é fato. É desagradável, mas é justo isso aparecer no filme — e isso está no filme. Eu sei que é chato, mas é verdade. Então não acho que isso seja militância. Acho que é ser honesto com a cultura do país.

Dornelles: E nós somos nordestinos, então a gente faz o filme sob esse ponto de vista.

Mendonça Filho: Até porque o ponto de vista do Nordeste raramente é visto.

TAB: "Bacurau" começou a ser pensado há quase dez anos, se passa em um futuro indeterminado e fala de assuntos muito atuais. Se houver uma continuação — como Kleber já disse que pode vir a ter —, do que vocês acham que estaremos falando no futuro?

Mendonça Filho: O Brasil é um país do "Novo Mundo", que está no ano de 2019, e é um país em que continuamos vendo casais brancos no shopping, seguidos por senhoras ou moças negras, vestidas de branco, a 4,5 metros atrás deles, segurando o bebê. Ou seja: o Brasil se repete, ele não aprende, ele continua se repetindo. "Bacurau" é um filme que se passa no futuro para fins de gênero e eu acho isso "supercool". O Juliano também adora — e me parece incrível quando aparece na tela do Odeon Leicester Square: "Daqui a alguns anos". Acho maravilhoso. Mas não tem nada de novo no filme, tudo é velho: poluição, desrespeito ao outro, violência, a relação com dinheiro, matança de gente, opressão, o completo descaso com a educação, o problema da água no Nordeste? é tudo velho no filme. O problema do Brasil é ele não se renovar — e toda vez que há uma tentativa de renovação, vem uma interrupção e a gente volta várias casas para trás.

TAB: No futuro a gente vai estar falando das mesmas coisas, então?

Dornelles: Espero que não, mas provavelmente sim.

Mendonça Filho: Não acho: tenho certeza que sim, pelo menos nos próximos 30 anos.

Dornelles: Até porque esse retrocesso de agora vai ser difícil de resolver.

Mendonça Filho: Acho que esse retrocesso vai ser curto.

Dornelles: Pode ser curto mesmo, mas vai ser difícil reconstruir o que está sendo destruído. Enfim, a previsão de 30 anos faz sentido. É engraçado, só faltam perguntar para a gente os seis números para acertar na Mega Sena, porque há uma quantidade imensa de loucuras no filme que estão acontecendo de verdade.

Mendonça Filho: É porque essas pessoas precisam ler mais livros de história e ir mais ao museu.

TAB: Se os forasteiros de "Bacurau" tivessem entrado no museu?

Dornelles: ...nada daquilo teria acontecido.