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Eles só querem dançar: 'festas limpas' têm luz, música e nada de álcool

Caroline Apple

Colaboração para o TAB

30/12/2019 04h01

Os corpos na pista se movimentam de forma aleatória. Não há passos sincronizados, não há coreografias pré-determinadas. As pessoas se contorcem, sobem e descem. Os olhos se mantêm fechados. Não há bebida alcoólica, não há cheiro de cigarro ou qualquer outro tipo de entorpecente. As únicas ferramentas de alteração de consciência são os movimentos corporais e a respiração.

Durante 20 anos, São Paulo teve a oportunidade de ter um evento nessa pegada: a Verdurada, um festival de música que trazia bandas, palestras e outras atividades. O som mais ouvido era o hardcore e punk. O que chamava a atenção era justamente o evento não vender álcool nem produtos de origem animal.

Porém, as "festas limpas" começa a ganhar mais fôlego no Brasil, mas ainda de forma tímida perto do que acontece em países com os EUA e alguns do sudeste asiático, como Tailândia. A ideia é simples: divertir-se sem usar nenhum tipo de substância que altere a consciência e a percepção, se jogando na pista, geralmente ao som de música eletrônica, considerada pelos adeptos das festas um instrumento propulsor da expansão de consciência. Um dos rolês mais famosos na gringa é a The Get Down Party, que acontece em Nova York (EUA), que lota de gente atrás de diversão num ambiente livre de drogas.

O conceito das festas livres anda lado a lado com o movimento conhecido como Ecstatic Dance (Êxtase Dança), que propõe que as pessoas atinjam o êxtase apenas pela música e pela dança de forma livre. É a hora em que os baladeiros são convidados a "sentir" quais tipos de movimentos seus corpos desejam fazer e botar para quebrar na pista sem medo ou vergonha dos olhares alheios, o que é comum nas noitadas mais tradicionais.

Festa Rave Quântica, em São Paulo - Caroline Apple/UOL - Caroline Apple/UOL
Festa Rave Quântica, em São Paulo
Imagem: Caroline Apple/UOL

No Brasil, a moda entra por uma porta no universo holístico. Indivíduos e grupos que seguem o caminho do autoconhecimento e da espiritualidade viram nessas reuniões a chance de se divertir em um ambiente familiar e com músicas ancestrais mixadas com música eletrônica. O "tum, tum, tum, tum" da música eletrônica divide espaço com tambores e flautas, além das batidas consideradas de "cura", como as que seguem os BPMs do coração.

Apesar das festas limpas serem uma tendência internacional, o empresário Diogo Di Napoli, de 42 anos, idealizador do espaço holístico Ewya, teve a ideia de criar a festa Spirit Dancing - Balada Consciente por sentir vontade de experimentar algo diferente. Além de ser uma festa livre de drogas, a balada ainda promove conceitos numa pegada Nova Era, como o veganismo, a cultura de paz, a valorização dos povos indígenas, o consumo consciente e as artes.

"Cheguei a ir a uma balada sem álcool, mas as músicas não me agradaram muito e o ambiente era 'normal'. Não tinha muita novidade. Aqui provamos que você não precisa beber álcool para se sentir estimulado. Pode tomar um drink energético a base de cacau ou de gengibre para ter um acréscimo de energia no seu corpo. Vai sair vibrando", afirma Di Napoli.

Para chegar até esse movimento, o empresário relembra que nem sempre suas escolhas contemplavam diversão sem o uso de drogas. "Sou ex-dependente químico. Usei cocaína, cola, cigarro, álcool e outras substâncias. Mas há 16 anos me tornei vegetariano e há 10 anos, vegano. Nesse processo, me tornei naturista e ativista. Considero a balada consciente uma ferramenta de luta do meu ativismo", relata.

Água aromatizada servida na festa Spirit Dancing - Caroline Apple/UOL - Caroline Apple/UOL
Água aromatizada servida na festa Spirit Dancing
Imagem: Caroline Apple/UOL

O TAB esteve na quarta edição da Spirit Dancing, em 9 de novembro de 2019. A festa bombou. Apesar da batida eletrônica, o ambiente não estava carregado, diferente das baladas eletrônicas convencionais, que paira um clima mais denso, mesmo que festivo. As pessoas dançavam de forma sutil, concentradas nos movimentos, e vez ou outra havia uma intervenção artística, como números circenses. No fundo da pista rolava uma live painting.

No meio dos baladeiros da matinê — a festa rola das 17h às 22h — estava a professora de ioga Deby Dai, de 38 anos, que curtia a festa com seu companheiro, Ricardo Farias, de 43, e sua filha Jasmin, de um ano, que corria entre tendas onde rolava aplicação de massagem e reiki.

"Eu morei em São Francisco, na Califórnia (EUA) por dez anos. Toda a semana tinha uma festa dessa. Aqui as pessoas estão começando a entender o conceito. Assim como cresce o movimento da ioga e do autoconhecimento, essas festas vão crescer junto. Eu gosto muito, porque está livre de bebidas e o horário é acessível para vir com as crianças", conta Dai.

Dança como meditação

Dentro da Ecstatic Dancing rola muito a dança como meditação, uma vez que o estado de presença aumenta quando a atenção é direcionada para o corpo, um princípio básico das técnicas meditativas, que convidam o meditador a levar o foco para a respiração.
O professor de meditação carioca Gabriel Menezes coloca em prática as diversas técnicas de meditação e respiração que vem estudando durante os últimos anos em diversos países. É dele a "Rave Quântica": durante três horas, os participantes da festa são levados a uma jornada meditativa por meio da música eletrônica, com exercícios de respiração propostos por ele, numa espécie de meditação guiada. A única bebida disponível no ambiente é água.

"Percebi que as pessoas não misturavam a dancing com técnicas de respiração. Então juntei técnicas de respiração avançada para induzir as pessoas a estados elevados de consciência, alternadas com música eletrônica, cromoterapia, aromaterapia e várias outras ferramentas terapêuticas. Tudo numa festa só. A ideia é se divertir e dar vazão a emoções e sentimentos", explica o professor.

A terapeuta Domênica Cristina Alves, de 46 anos, era uma das participantes da "Rave Quântica", que reuniu 40 pessoas na segunda edição. A festa rolou em novembro de 2019, no Espaço da Curva, no Butantã, na zona oeste da capital paulista. Domênica afirma que foi seu primeiro contato com uma rave. Apesar do evento estar longe do tamanho (e do espírito) das grandes festas de música eletrônica, a terapeuta afirma que desconstruiu a ideia que tinha desse tipo de festa quando deparou com um ambiente livre de álcool e outros entorpecentes.

"Existem várias formas de se divertir e quero aproveitar todas. Isso para mim é liberdade. Sentir a alegria da música, mas dentro de um ambiente saudável. Você percebe que as pessoas querem se conectar com elas mesmas. É uma festa em que todos estão com a mesma intenção. Virei freguesa desse tipo de movimento. Quero ir a festas ainda maiores, com famílias, num ambiente tranquilo, limpo", diz a terapeuta.

A terapeuta Domênica Cristina Alves, que participou da Rave Quântica - Caroline Apple/UOL - Caroline Apple/UOL
A terapeuta Domênica Cristina Alves, que participou da Rave Quântica
Imagem: Caroline Apple/UOL

Domênica Alves não tem um histórico de uso de drogas, além do consumo "social" de álcool, segundo ela. Mas ela está dentro do perfil daqueles que acentuaram sua caminhada do autoconhecimento por conta de quadros depressivos. Portanto, a terapeuta afirma que está feliz por encontrar um ambiente que une diversão e atividades que ajudam na expansão da consciência. "Fui evangélica e depois espírita durante anos, mas não conseguir me encontrar. Minha vida emocional e profissional estava bastante conturbada, resolvi que era a hora de deixar os dogmas de lado e trilhar outra história", conta.

Millennial pede água

O uso de álcool por jovens apresenta um desafio para a saúde pública. Pesquisa lançada em 2019 pelo Cisa (Centro de Informação sobre Saúde e Álcool), que traz um panorama do consumo de álcool no país entre 2010 e 2017, aponta que o índice de jovens entre 13 e 15 anos que bebem aumentou de 50,3% para 55,5%, em três anos.

Portanto, as festas limpas são alternativa para os jovens que buscam diversão, mas começam a questionar a necessidade do uso constante de substâncias para aproveitar o momento. Mas isso não quer dizer que eles queiram estar em um ambiente "careta".

Não há dados oficiais sobre o perfil dos frequentadores deste tipo de festa, mas seus organizadores afirmam ser um lugar de "pessoas com a mente mais aberta". As idades dos frequentadores podem variar, mas os interesses unem esse público. São terapeutas holísticos e interessados em meditação e assuntos relacionados à espiritualidade e ao autoconhecimento, além de adeptos do veganismo e outros indivíduos que propagam uma cultura de paz. Além disso, não é difícil se deparar com entusiastas do xamanismo que fazem uso das medicinas da floresta, como rapé e ayahuasca.

O analista de TI Gustavo de Freitas Paes Ranconi, de 22 anos, afirma que esse tipo de vivência é uma forma de acessar um estado de alegria diferente e ao lado de pessoas divertidas e abertas a novas formas de viver a vida. "É incrível conseguir chegar em êxtase sem precisar de nenhum estimulante, além da música. Uma experiência sensorial. Não importa se você seja espiritualizado ou não, é a chance de desmistificar o conceito do que é se divertir", conta Ranconi.

A busca vai ao encontro da proposta dos idealizadores. Gabriel Menezes conta que o nome "Rave Quântica" surgiu como um apelo a dois grupos. A palavra "rave" foi escolhida para atrair os jovens que gostam de festas e buscam novos ares. A palavra "quântica" vem para capturar a atenção dos que já estão nesta jornada de autoconhecimento.

"Para os mais jovens, a ideia é mostrar que não é preciso usar drogas para fugir da realidade. É possível acessar outras realidades de forma saudável e mais elevada. E, para os mais velhos, quero mostrar que nunca é tarde demais para curtir, se divertir e se entregar à sabedoria dos nossos corpos", explica.

Para o idealizador da Spirit Dancing, os jovens também são o público-alvo das festas limpas. "A balada consciente tem essa premissa, de mostrar para os jovens que existe a possibilidade de se divertir numa festa sem a necessidade de usar qualquer tipo de droga", afirma Di Napoli.

Quem já queimou chão pelas baladas da vida também diz ter encontrado nas festas limpas uma alternativa para voltar a se divertir num ambiente alternativo. A terapeuta tântrica Samanta Gomes Sardinha, de 41 anos, foi pela primeira vez numa festa limpa em uma das edições da Spirit Dancing. "As pessoas precisam aprender a entrar num processo de expansão a partir do próprio corpo. Nesse tipo de festa as pessoas podem ser quem elas realmente são, sem ficar tentando provar alguma coisa para alguém", diz.