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Por que grandes eventos nos fazem correr atrás de previsões do passado

Retrato de Michel de Nostredame, conhecido como Nostradamus (pintura do século 17) - Wikimedia Commons
Retrato de Michel de Nostredame, conhecido como Nostradamus (pintura do século 17) Imagem: Wikimedia Commons

Leonardo Neiva

Colaboração com o TAB

30/06/2020 04h00

Pouco tempo atrás, a celebridade e empresária norte-americana Kim Kardashian compartilhou com seus mais de 65 milhões de seguidores no Twitter o trecho de um livro enviado pela irmã Kourtney.

"Perto de 2020, uma doença semelhante à pneumonia se espalhará pelo globo, atacando os pulmões e os brônquios e resistindo a todos os tratamentos conhecidos. Quase mais desconcertante do que a doença em si será o fato de que ela vai sumir tão rapidamente quanto chegou, atacará novamente dez anos depois, e então desaparecerá completamente."

Soa familiar? Bem, tirando a parte sobre o desaparecimento da doença, que infelizmente não se concretizou, é natural que muitos tenham ligado à pandemia de Covid-19 ao trecho do livro "End of Days: Predictions and Prophecies About the End of the World" (Fim dos Dias: Previsões e Profecias sobre o Fim do Mundo), publicado em 2008 pela médium Sylvia Browne, já falecida.

Não à toa, o post de Kim recebeu mais de 238 mil curtidas e foi compartilhado 53 mil vezes, ajudando a alavancar o livro da médium às primeiras posições do ranking de venda no site da Amazon.

O caso é só um dos muitos exemplos de como eventos de impacto global, tal qual a pandemia ou a nuvem de gafanhotos que se aproxima do Brasil, atraem os olhos do público para previsões como essa.

Pouco antes de morrer, a célebre vidente búlgara Baba Vanga, conhecida como a Nostradamus dos Bálcãs, também teria previsto o surto da doença com a frase "o corona estará sobre nós".

O autor norte-americano de suspense Dean Koontz também não escapou dessa obsessão por previsões. Em fevereiro de 2020, um leitor divulgou na internet um trecho de seu livro de ficção "Os Olhos da Escuridão", em que o escritor fala sobre um vírus Wuhan-400, que na obra é uma arma biológica desenvolvida em um laboratório próximo à cidade chinesa. Apesar de a doença literária ser diferente da Covid-19 e de o vírus ter outro nome nas primeiras edições do livro, muitos continuaram associando a doença ficcional ao vírus real, surgido em Wuhan.

Organizando um mundo caótico

"Acreditamos em coisas que nos dão um senso de controle da realidade. Imaginar que alguém já tinha previsto o que aconteceria dá um pouquinho de ordem para o caos. Se abrirmos mão das crenças, o que sobra é um vazio", explica o professor do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), Leonardo Martins.

Martins é especialista em psicologia anomalística, área que estuda a psicologia de crenças e experiências ligadas ao paranormal. Para ele, o comportamento daqueles que buscam previsões passadas sobre a doença é típico do pensamento humano, numa tentativa de tornar a realidade mais previsível.

O psicólogo dá como exemplo a corrida por papel higiênico que esvaziou prateleiras de supermercados no início da pandemia, uma outra maneira de tentar controlar uma realidade incontrolável. "É um fenômeno psicológico chamado Lei de Yerkes-Dodson, que mostra que, num ambiente caótico, começamos a reagir de modo estereotipado e irracional. Trata-se de um fenômeno coletivo. Se você vê outras pessoas fazendo, esse comportamento é potencializado."

O psicólogo e professor do Programa de Ciência da Religião da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Everton Maraldi diz que é natural tentar criar uma narrativa lógica para os fatos, ainda que baseada não na racionalidade, mas na intuição. Portanto, seguindo as crenças tradicionais, se algo acontece e nada acontece por acaso, a conclusão é que aquilo já devia estar programado e poderia ser previsto.

"Se você supõe que as coisas não acontecem aleatoriamente, significa que há um propósito na vida, que você tem uma missão. Isso dá um norte em meio ao caos, o que traz benefícios em termos de autoestima e de qualidade de vida, com uma diminuição da ansiedade e do estresse", afirma Maraldi.

Quem quer ver além

A astróloga Márcia Fernandes, também conhecida como Márcia Sensitiva, colunista do UOL, conta que 80% daqueles que a procuram após um acontecimento de grandes proporções como a pandemia buscam previsões sobre trabalho e dinheiro, enquanto outros 20% se preocupam com a cura para o planeta. Na maioria dos casos, essa preocupação é com o individual, e não com o coletivo.

Segundo a sensitiva, embora não tenha previsto a doença, já era possível adiantar que 2020 seria um ano repleto de eventos catastróficos. Mas ela lembra que, "na astrologia, tudo são possibilidades, não é vidência".

Para Martins, mesmo pessoas pouco dadas ao misticismo podem se ver buscando previsões, pois é uma forma de agir profundamente baseada no pensamento humano. "Já temos tendência natural a enxergar padrões em coisas aleatórias ou dar validade a uma crença pouco comprovada."

A bancária Raquel Garcia, 29, não gosta de ler horóscopo, mas tem um interesse geral por signos e astrologia. Sagitariana, ela diz acompanhar previsões sobre o futuro da humanidade com "um apetite quase histórico".
"Na verdade sou bastante cética, mas creio em algo além. Quando vejo que alguém previu uma coisa que de fato aconteceu, isso me marca porque tira um pouco do meu ceticismo e faz com que eu acredite que certos fatos eram predestinados", conta.

Logo que a pandemia começou, ela imaginou que um evento dessa magnitude tinha que ter sido previsto por alguém. Em uma pesquisa rápida, topou com o nome da vidente Baba Vanga.

"É como se fosse um capítulo já escrito da humanidade, como se precisássemos passar por essa experiência. E ver que ela fez previsões até para o ano 5000 faz com que me sinta bem por saber que o mundo não vai acabar tão cedo."

Questão de probabilidade

Imagine que você está pensando numa pessoa com quem tem pouco contato hoje. No instante seguinte, o telefone toca e ela está do outro lado da linha. A tendência é atribuir a esse acontecimento uma explicação paranormal, como se um vínculo telepático tivesse se estabelecido com a outra pessoa.

O problema é que, ao dar a esse evento um significado sobrenatural, você se esquece de todas as outras ocasiões em que pensou em alguém, talvez nessa mesma pessoa, e ela não te telefonou. Segundo Maraldi, o fenômeno pode ser explicado pela psicologia, pois a cognição humana tende a se fixar nos eventos mais significativos e se esquecer dos outros.

"Do mesmo jeito, temos tendência a olhar para as previsões da pandemia e ignorar outras ocasiões em que as previsões deram errado", explica o psicólogo, que lembra o fato de vários videntes e astrólogos terem previsto que 2020 seria um ano calmo.

Leonardo Martins diz que o fenômeno está ligado a uma regra da probabilidade: a lei dos grandes números. Ou seja, se a chance de termos um sonho premonitório é relativamente pequena, ela aumenta bastante ao considerarmos que somos sete bilhões de pessoas no planeta, tendo vários sonhos todas as noites. Como tendemos a nos focar apenas naqueles que se concretizam, isso poderia explicar muitas das previsões.

Dos Simpsons aos laboratórios

Houve quem encontrasse previsões sobre o novo coronavírus inclusive em cenas do desenho "Os Simpsons", especialmente em um episódio de 1993, em que uma gripe de origem asiática atinge a cidade de Springfield. O programa, aliás, tem virado uma espécie de oráculo da sociedade, com telespectadores encontrando dezenas de conexões entre acontecimentos reais e cenas do desenho.

Martins conecta esse exemplo ao caso do livro de ficção de Dean Koontz, ambos usados como fontes de previsões, para apontar uma mitificação da cultura pop atual.

"O mitologista Joseph Campbell apontou que nossa cultura está sedenta por novos mitos. Quando as religiões tradicionais e mitologias vão perdendo força, a gente começa a buscar outros. A cultura pop é um deles."

Outra fonte de previsões foi a própria ciência, com pesquisadores e até a OMS (Organização Mundial da Saúde) antecipando a possibilidade de uma pandemia similar a que vivemos.

"É diferente da religião, do senso comum, de teorias da conspiração. A ciência tem mecanismos de autocorreção para driblar nossa tendência a enxergar padrões que não existem, e por isso tem peso maior como instrumento para questionar a realidade", afirma Martins.

Para Maraldi, o alerta constante da ciência sobre os perigos de um surto pode inclusive ter motivado previsões sobre a atual pandemia. "É uma ameaça sempre presente em algum grau e a mente humana é muito imaginativa. Buscamos nos antecipar a cenários possíveis, o que poderia muito bem explicar algumas dessas previsões."