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O percurso da yoga, que foi de prática espiritual a produto de bem-estar

Mulher treina posição de yoga em Belfast, na Irlanda do Norte - Zen Bear Yoga/Unsplash
Mulher treina posição de yoga em Belfast, na Irlanda do Norte Imagem: Zen Bear Yoga/Unsplash

Tamires Dias

Colaboração para o TAB, do Rio

27/09/2020 04h01

"Ferramenta de autoconhecimento": esta é a definição clássica de yoga, prática milenar indiana que foi disseminada pelo mundo no século 20 e parece mais popular do que nunca. Para muitos, contudo, autoconhecimento é luxo e produto — afinal, quem tem tempo para descobrir as potencialidades do corpo e da mente?

Pensar em yoga, no Brasil, é visualizar uma academia de ginástica ou uma sala perfumada de incenso onde mulheres brancas, ricas e magras testam sua flexibilidade e os limites do próprio corpo. Estúdios que cobram R$ 500 por mês e têm suas aulas ao som de versões instrumentais de músicas pop e incenso de patchouli certamente contribuem para essa ideia.

Hoje, espaços desse tipo podem ser encontrados em São Paulo, Cidade do México, Los Angeles e até em Nova Délhi. Era essa a imagem da yoga 5 mil anos atrás? O que os indianos têm a dizer sobre sua popularização? Para entender o caminho entre a prática como autoconhecimento e a prática como mercadoria, vendida a altos preços, é preciso pensar em questões culturais, sociais e econômicas.

Posição malandra

Uma tradução possível para a palavra yoga, que vem do sânscrito, é "união", embora haja várias outras acepções. Ninguém sabe quando ela surgiu, mas tudo leva a crer que a disciplina, de caráter espiritual, já existia em 400 a.C, quando o sábio indiano Patanjali compilou uma série de aforismos sobre ela, no volume "Yoga Sutra".

Na Índia, um país cuja imagem evoca devoção às tradições e à espiritualidade, yoga é muito mais que um alongamento para melhorar forma e condicionamento físico. A ideia é, na união entre corpo e mente, despertar a consciência em cada parte do corpo e dissolver-se no infinito, treinando desde a respiração e o diafragma até as extremidades. Assim como pensamentos provocam uma reação — ansiedade dispara o coração e provoca transpiração, e medo pode tensionar os músculos —, o inverso também é verdadeiro. Ou seja: levar o corpo a posições diferentes ajuda a reprogramar a mente. Uma boa prática leva a uma meditação mais plena.

Nesse sentido, a yoga se propõe um exercício preparatório e espiritual. E isso seguiu acontecendo até que ela vem parar no Ocidente: no final do século 19, quando a Índia ainda estava sob domínio britânico, um congresso religioso em Chicago apresentou a yoga para o mundo.

Mas foi a partir dos anos 1950 que a yoga se espalhou pelos EUA e chegou ao Brasil, onde encantou (quem diria!) militares. O francês Leo Costet veio ao Brasil e se alojou em Resende (RJ), onde montou um ashram, tipo de comunidade espiritual, em que ensinava yoga. Em uma de suas palestras, foi assistido pelo general do Exército Caio Miranda, que veio a ser o primeiro iogue brasileiro e autor do primeiro livro sobre o assunto no país. Ele e José Hermógenes, tenente-coronel do Exército, foram os grandes difusores iniciais da prática por aqui.

A prática deles estava muito ligada à yogaterapia, vertente que foca na manutenção da saúde e é praticada de forma leve, diferenciando-se de práticas mais intensas oferecidas nos estúdios hoje, e já descolada de um senso espiritual mais profundo. Hermógenes, que encontrou a yoga depois de um diagnóstico de tuberculose aos 35 anos, defendia a yogaterapia desde os anos 1960, em obras como "Yoga para nervosos" (1969).

E ai? que voce? achou que essa galera da yoga esta? so? preocupada em emanar good vibes e encontrar o lado bom das coisas certo? Errado! Chega mais pra gente conversar sobre como o yoga se relaciona com uma dimensa?o poli?tica da nossa vida! Isso mesmo, poli?tica amores. Na?o da? mais pra deixar as pessoas achando que somos seres a? par dos acontecimentos sociais. Conduzir pra?ticas de yoga e? antes de tudo um ato revoluciona?rio quando pensamos no seu sentido mais profundo que e? gerar conscie?ncia e conexa?o com o nosso interior. Quanto mais nos conhecemos, mais clareza temos sobre nossas emoc?o?es e sentimentos. Num mundo meio abarrotado de informac?a?o e com jornadas de trabalho cada vez mais extenuantes, tambe?m na?o posso deixar de pontuar o quanto a pro?pria possibilidade de fazer yoga se mostra como um privile?gio para uma parcela da populac?a?o. Neste sentido a democratizac?a?o de acesso a pra?ticas de autocuidado e? urgente! A se?rie de quadrinhos com ilustrac?o?es do @leandro_assis_ilustra mostram de uma maneira cortante o quanto esse "universo good vibes' pode se mostrar cruel quando trabalha a servic?o do ego e nem um pouco conectada com a esse?ncia dos ensinamentos da yoga. Na?o ha? equanimidade quando se explora o outro. Na?o ha? ahimsa (na?o viole?ncia) quando voce? na?o tem capacidade de enxergar a dor do outro. Se esta discussa?o tambe?m te interessa te convido a assistir o u?ltimo IGTV do querido @trabalhointerior em que ele aborda lucidamente o quanto ser um yogue na?o tem relac?a?o com estar desconectado com a realidade do mundo. Se uma das definic?o?es da yoga e? a "habilidade na ac?a?o", somos convocados nesse momento a agir com respeito, disponibilidade e empatia para com aqueles que esta?o em alguma situac?a?o de sofrimento neste momento ta?o delicado da pandemia da COVID-19. Que a gente possa sim vibrar paz, harmonia e iluminar a vida das pessoas mas que jamais nos esquec?amos que a urge?ncia da vida e? a ac?a?o e que viver e? um ATO POLI?TICO. #yogabr #yoganasuamedida #carolrochayoga #yoganobrasil #yogaerrejota #yogapolitica #professora #yogini #yogapolitico #selfcare #goodvibecomproposito

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Desde então, a prática vem tomando contornos novos e se desenrolando em diferentes vertentes.

Hoje, há até misturas de yoga com expressões culturais tipicamente brasileiras, como o funk carioca. O pesquisador paulista Roberto Simões, 47, especializado em psicologia, fisiologia e yoga, chama a prática brasileira de "yoga malandra". "É a yoga com alma brasileira. Ao mesmo tempo que infringe as regras tradicionais, adapta-se ao que tem", explica Roberto, que cuida da plataforma yogacontemporaneo.

Segundo ele, a yoga malandra tem "forte poder de miscigenação" e é constantemente alimentada pela brasilidade. Isso é demonstrado também no sincretismo religioso: "o yoga brasileiro pode ter no altar Oxalá, Zé Pilintra, Jesus Cristo, Ganesha. Não se vê isso em outro lugar", pontua.

De volta às origens

A­­ maior parte da yoga praticada no Brasil é de origem indiana, como o Hatha e Vinyasa Yoga. Mas as práticas na Índia podem não ser o que esperam os ocidentais. É o que conta Carla Bricaire, 33, arquiteta mexicana que foi morar na Índia em 2009 a trabalho e hoje é professora de yoga em Minas Gerais e produtora de conteúdo no @pratiqueyogaemcasa. Ela diz que chegou em Hyderabad, cidade de 6 milhões de habitantes, e esperava aulas de yoga em cada esquina, mas não foi bem assim. Acabou praticando em uma associação de moradores.

Ela conta que lá, a Bhakti Yoga, ou yoga devocional, é universal e ultrapassa as barreiras sociais. Templos estão espalhados por todo lugar, e crianças a aprendem na escola. "No lugar onde eu trabalhava havia, toda semana, festas para os deuses, e isso para eles já era yoga. As posturas são só um complemento", afirma.

Profissionais de saúde paramentados com EPIs dão aula de yoga a pacientes com Covid em Nova Délhi, na Índia - Raj K Raj/Hindustan Times/Getty Images - Raj K Raj/Hindustan Times/Getty Images
Profissionais de saúde paramentados com EPIs dão aula de yoga a pacientes com Covid em Nova Délhi, na Índia
Imagem: Raj K Raj/Hindustan Times/Getty Images

Mas a yoga baseada em asanas (posturas) também existe e é encontrada em estúdios, que, como no Ocidente, impõem limites econômicos. Uma aula em um estúdio de Nova Délhi, por exemplo, custa em torno de 750 rúpias indianas, cerca de R$ 54. Na pandemia, as aulas presenciais também pararam, e alguns estúdios oferecem aulas online com preços equivalentes a R$ 300 por mês.

Além disso, na Índia também existem os cursos de formação para instrutor de yoga. Gente do mundo todo vai para lá para "beber da fonte". Regiões como Rishikesh e Goa são famosas e oferecem cursos que podem custar mais de R$ 20 mil.
"As pessoas que vêm à Índia para se formar são principalmente europeias, praticamente não se vê indianos", conta Carla Bricaire. Cursos desse tipo existem por lá desde os anos 1920.

Yoga e soft power

Com a colonização britânica, a yoga tornou-se símbolo do nacionalismo indiano. Isso começou com jovens indianos de famílias ricas, que partiam para estudar na Europa, conheciam a cultura do colonizador e, ao voltar, percebiam o quanto o povo indiano era subjugado. Encontraram então na yoga uma maneira de mostrar para o mundo que os indianos não eram inferiores, e sim um império milenar — e assim, a yoga virou uma espécie de produto de exportação. "Pensa-se que a mercantilização da yoga começou no Ocidente, mas a própria Índia entende a prática como 'indústria' para vender suas bandeiras, cores e símbolos", explica Roberto Simões.

Família pratica yoga em Katmandu, no Nepal -  Narayan Maharjan/NurPhoto/Getty Images -  Narayan Maharjan/NurPhoto/Getty Images
Família pratica yoga em Katmandu, no Nepal
Imagem: Narayan Maharjan/NurPhoto/Getty Images

Até hoje, a yoga é um símbolo nacional forte, muito utilizado na política externa indiana. O primeiro-ministro Narendra Modi, por exemplo, é grande propagador da prática internacionalmente. Muita gente vê esse discurso como forma de manipular o imaginário orientalista do Ocidente e legitimar agendas políticas. Mas o fato é que, desde o século 20, a yoga vende, e vende bem.

"Uma vez inserida no capitalismo, ela faz parte da dinâmica de venda e consumo. Tem hora para começar e acabar, organização dos corpos, padronização: todos enfileirados repetindo os mesmos movimentos. Tipo 'Tempos Modernos', o filme do Charles Chaplin", explica Simões, que relaciona a "reprodutibilidade técnica" da indústria cultural, teoria de Theodor Adorno (1903-1969) e de Max Horkheimer (1895-1973), com a yoga como mercadoria.

Quem tem acesso?

"Ter acessou ou não é um ato político. E temos que pensar em como a prática pode ser revolucionária e emancipadora", conta Carol Rocha, carioca de 29 anos, que é professora de yoga e atrela em sua prática questões de classe e raça. Ela é fundadora do estúdio Aya, na Zona Norte do Rio, pensado como um espaço de cuidado para pessoas negras.

Essa percepção acontece também em outras partes do mundo. Nos EUA, o movimento Healing From White Yoga ("Curando-se da yoga branca", em tradução livre) reúne ex-professores e ex-praticantes que resolveram se rebelar contra a prática da yoga ocidentalizada e agora usam a internet para denunciar seu caráter tóxico.

As críticas geralmente pontuam que o Ocidente pegou uma prática sagrada e transformou em indústria que vende o bem-estar. Nos EUA, por exemplo, onde a yoga é um sucesso, com mais de 36 milhões de praticantes segundo estudo de 2016 da Yoga Alliance, "yoga pants" virou termo genérico para calça de malhar.

Para Carla Bricaire, hoje no Ocidente ou você acessa a yoga através da "indústria", ou não acessa. E mesmo entrando por esse caminho, pode acabar descobrindo o lado devocional e se beneficiando dos dois mundos.

Treino de yoga em Dharamshala, cidade-base do Dalai Lama, em 2011   - Carla Bricaire/Divulgação - Carla Bricaire/Divulgação
Treino de yoga em Dharamshala, cidade-base do Dalai Lama, em 2011
Imagem: Carla Bricaire/Divulgação

"Tem espaço suficiente para a prática mais comercial e para a devocional", afirma.

Em tempos de isolamento social, a internet tem dado novo gás à prática. Há centenas de aulas disponíveis pelo YouTube, além de lives no Instagram e aplicativos próprios.

"A yoga online é democrática. Se você não tem acesso a um estúdio, ainda pode praticar. Ajuda também aos professores autônomos que estão na luta, que muitas vezes são impedidos de trabalhar em estúdios elitistas que favorecem um padrão de professor: branco, magro, de cabelo liso", relata Larissa Farias, paulistana de 33 anos e criadora do YogandoBR, uma plataforma de yoga online.

Uma grande parcela da população brasileira, contudo, não tem acesso a internet. Nesse contexto, alguns projetos buscam espalhar a yoga em espaços menos favorecidos. Um deles é o Yoga na Maré, no Rio, que desde 2015 atende a comunidade gratuitamente. Ana Olívia Cardoso, 40, portuguesa professora de yoga responsável pelo projeto, conta que a ideia era oferecer um sistema de autocuidado e saúde para os moradores.

Aula do projeto Yoga na Maré, no Rio, capitaneada por Ana Olívia Cardoso - Diogo Felix/Divulgação - Diogo Felix/Divulgação
Aula do projeto Yoga na Maré, no Rio, capitaneada por Ana Olívia Cardoso
Imagem: Diogo Felix/Divulgação

"Além da barreira econômica, que é clara, existe também a do não-reconhecimento. Muitos alunos diziam que sempre quiseram praticar, mas achavam que não era para eles", relata.

Carol Rocha tem uma experiência semelhante. Ela também é nutricionista atuante em clínicas da família no SUS, e implementou yoga em uma das unidades onde trabalha. Para ela, falar de democratização da yoga também é falar de políticas públicas.
"Hoje o SUS comporta Práticas Integrativas e Complementares, onde o yoga se encaixa. Imagina se cada unidade tivesse essa disponibilidade, o benefício que as comunidades teriam", pondera.