Caso Evandro, Ângela Diniz e Nardoni: como funciona um tribunal de júri?
Você já viu nos filmes e séries norte-americanos: uma fileira de jurados assiste a um julgamento e depois se fecha em uma sala para decidir o futuro de um réu. "12 Homens e uma Sentença" (1958), clássico de Sidney Lumet que também virou peça de teatro, acontece em apenas um cenário: a sala dos jurados. O enredo é comum nos produtos culturais estrangeiros e é um retrato de como o judiciário lá funciona.
A versão tupiniquim do tribunal de júri é um pouco diferente.
Na onda atual de podcasts sobre crimes no Brasil, como no "Caso Evandro", do "Projeto Humanos", e "Praia dos Ossos", da Rádio Novelo, sobre o assassinato de Ângela Diniz, também ouvimos áudios de julgamentos que passaram por um tribunal de júri. Casos famosos e de apelo popular mais recentes, como o de Suzane Richthofen e dos Nardoni, foram definidos pelo voto de cidadãos comuns. Há muito debate na área do direito sobre quais tipos de crime devem ser julgados por um júri ou por um juiz.
De onde vem o conceito? "A ideia é que as pessoas sejam julgadas pelos seus próprios pares, pelo próprio povo", explica Thiago Bottino, professor da FGV Direito-Rio. "Isso está na história da antiguidade há muito tempo. Muito antes de existir juiz para julgar determinados casos, você tinha um procedimento de reunir pessoas para que elas votassem e decidissem se alguém seria condenado ou não", afirma. Na literatura da área jurídica, há muito debate em torno da origem do tribunal do júri, uma das hipóteses é de seja romana.
Quais casos vão a júri no Brasil? Por aqui, são passíveis de júri popular crimes dolosos contra a vida, ou seja, homicídios dolosos, induzimento ao suicídio, infanticídio e aborto. "O nosso tribunal do júri é considerado um meio democrático de aplicação do direito", afirma Renata Melfi, advogada, doutora em filosofia e professora PUCPR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná).
Desde quando é aplicado? O tribunal do júri está previsto no Brasil desde a Constituição de 1822. Naquela época, servia apenas para julgar crimes relacionados ao abuso de liberdade de imprensa. Somente em 1946, os crimes dolosos contra a vida viraram responsabilidade do tribunal do júri. Os julgamentos acontecem em duas fases: primeiro é feita a denúncia e um juiz deve decidir se o caso deve ir a júri. As partes são ouvidas e depois o processo é encaminhado para um tribunal de júri. Só então acontece o julgamento em plenário.
É igual aos filmes de Hollywood? Não. Aqui as decisões são tomadas por maioria e não por unanimidade. Por isso, o número de jurados é sempre ímpar: sete pessoas compõem o júri. No Brasil, os jurados não podem conversar entre si sobre o caso. Cada um vota depois de ser apresentado aos argumentos da defesa e da acusação. "A vantagem é que não tem ninguém influenciando a discussão, cada um vota no que acha justo", diz Bottino. Entretanto, um debate entre os jurados permitiria que as pessoas contrapusessem seus pontos de vista e pudessem ter uma visão mais ampla e mais completa sobre o caso, antes de tomar uma decisão, crê o professor da FGV.
Como é o processo de escolha? Em cada caso, 25 pessoas são escolhidas como jurados e um juiz é destacado como presidente. Destes 25, pelo menos 15 devem comparecer ao tribunal no dia do julgamento. Quando chega a hora de dar a sentença, sete pessoas são sorteadas para compor o júri, e tanto a defesa quanto a acusação devem concordar com a composição. Cada lado tem poder de vetar até três candidatos sem justificativa; já as recusas motivadas não têm limite. Não pode fazer parte do júri quem tenha qualquer relação com o réu ou com a vítima, seja de parentesco ou de amizade.
Então, no fundo, não é qualquer pessoa? Por lei, não pode haver discriminação de gênero, raça, idade ou orientação sexual. A única exigência é que o cidadão tenha mais de 18 anos. Como acontece nos filmes, os advogados pesquisam a vida dos jurados antes do julgamento para poder vetar ou aceitar a composição do júri. A intenção é que o resultado seja o mais justo e imparcial possível. Pessoas da área do Direito também desenvolvem pesquisas que apontam a tendência de alguns perfis a condenar ou absolver, por exemplo. Algumas apontam que mulheres são mais rigorosas em julgamento do que homens, diz Melfi. "No caso de um julgamento de grande clamor popular e cobertura jornalística, os advogados precisam investigar o perfil dos jurados para compor um júri imparcial", afirma a advogada.
Como são encontrados os jurados? Normalmente, a lista de pessoas aptas a serem juradas é feita por órgãos eleitorais ou outras instituições. Os tribunais requisitam a autoridades locais, instituições de ensino e sindicatos nomes de pessoas que possam compor um júri. Também é possível se voluntariar. "É mais ou menos como o sorteio para ser mesário nas eleições", diz Melfi. Assim como a função de mesário, o cidadão fica sujeito à multa, caso não compareça ao tribunal sem justificativa. O valor varia de um a dez salários mínimos. "Participar de um julgamento como jurado é considerado uma prática do exercício da democracia", afirma Melfi. "Você pode justificar a ausência e dizer que tem algum impedimento para comparecer. Um juiz decidirá se acata ou não." Para evitar o "vício" e a formação de um corpo de "jurados profissionais", há uma janela de tempo entre uma convocação e outra.
E quando o caso fica muito famoso? Em casos de grande comoção nacional, corre-se o risco de o júri ser exposto a dados e opiniões prévias, criando um viés antes do julgamento. "Fico imaginando se as pessoas que chegaram para julgar o caso Nardoni tinham condições de ouvir o lado da defesa", diz Bottino. Nesses casos, os advogados podem pedir o que se chama de "desaforamento", como aconteceu no caso Evandro, referente ao sequestro e assassinato do garoto Evandro Ramos Caetano em 1992, em Guaratuba (PR), levado para julgamento em São José dos Pinhais (PR) e depois para Curitiba. "Outro fator favorável nesse tipo de caso é o tempo. Se demorar, isso faz com que o clamor popular abrande", afirma Melfi, que foi estagiária do escritório de advogados que cuidou do caso, em 1995. Quando os julgamentos são assim longos — o do caso Evandro levou 34 dias — , o júri permanece no tribunal, que normalmente tem infraestrutura para hospedá-lo, ou é levado para hotéis com escolta policial, para garantir que os jurados não entrarão em contato com ninguém nem entre si.
Como é o dia do julgamento? Depois de sorteados os sete jurados, eles ouvem as testemunhas e têm acesso às provas do processo. Parece rápido, mas pode levar um bom tempo. Depois de assistir ao debate entre as duas partes e ouvir o acusado, quando decide se manifestar, os jurados são levados para uma sala secreta. Ali, o juiz apresenta quesitos sobre o caso e eles respondem sim ou não em cédulas que são depositadas em uma urna, sendo a pergunta "o jurado absolve o acusado?" obrigatória. Os votos são contados e a decisão de condenação ou absolvição é anunciada no tribunal. Mas quem determina a pena é o juiz, já que é preciso ter conhecimento sobre o código penal. A decisão do tribunal do júri é soberana, mas há a possibilidade de revisão e o réu pode ser levado a um novo júri, se o crime ainda não tiver sido prescrito.
E como é ser jurado? Como tudo na vida, vai do gosto. Fernando Souza, 31, é analista de sistemas em São Paulo e já participou como jurado três vezes, em 2011, 2014 e 2016. "Recebi um telegrama em casa", conta. "Você entra, o juiz explica o caso e enquanto você ouve a defesa, a acusação e o réu, não pode ter reação nenhuma, tem de ficar quieto, com cara de paisagem", brinca. Os três casos de que Souza participou foram homicídios. "Quando acaba, a gente é chamado para uma sala, com o juiz. Ele faz um resumo do caso, entrega cartões de sim ou não e conta os votos. Dependendo da decisão, ele dá a sentença", diz. "Me senti meio desconfortável nessa posição. Você não escolhe estar ali e tem essa responsabilidade. Mesmo que a pessoa seja culpada, você não sabe quem ela é. Essa decisão tem um peso." O estatístico Pedro Bello, 62, do Rio, participou de dois julgamentos como júri. "É uma experiência", afirma. "Achei interessante, mas não sei se gostaria de participar mais vezes, é muito cansativo. E eles passam tudo para os jurados, todas as provas: vídeos, fotos de cadáver, é muito triste." Para ele, é uma forma que pode ser justa, já que conta com várias opiniões. "Um juiz sozinho pode cometer alguma injustiça. Se a decisão passa por mais pessoas, há chance de ela ser mais justa."
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