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O que os contos (quase) esquecidos de Machado de Assis dizem sobre o Brasil

O escritor carioca Machado de Assis - Reprodução
O escritor carioca Machado de Assis Imagem: Reprodução

Wanise Martinez

Colaboração para o TAB

18/10/2020 04h01

Entre os mais de duzentos contos que Machado de Assis publicou, ao longo da carreira, estão revelações do que é o Brasil, ainda hoje. Apesar da vasta produção, muitos deles não ficaram tão conhecidos, em especial os escritos antes de sua consagração literária como romancista.

"Contos (Quase) Esquecidos" (Editora Filocalia), lançado em 2020, reúne alguns desses textos, com o objetivo de apresentar ao público o autor em formação mesclando gêneros, realizando experimentos ou ainda estruturando concepções sobre o mundo em que vivia e que se tornariam fundamentais para suas grandes obras.

Junto ao TAB, o organizador do livro, ensaísta e professor de Literatura Comparada da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), João Cezar de Castro Rocha, escolheu três contos do autor a partir da ótica social, cultural, política e econômica. Quem também colaborou com analogias e reflexões foram outros três especialistas em Machado de Assis: Vitor Cei, professor de Literatura da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo); Eduardo de Assis Duarte, escritor e professor de Teoria Literária da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), e João Adolfo Hansen, crítico literário e professor de Literatura Brasileira na USP (Universidade de São Paulo).

'Um erradio'

Publicado em 1894, o conto "Um erradio" retrata a história de Elisiário, um homem branco e pobre que, apesar de inteligente, não consegue concretizar suas obras. "O pouco desenvolvimento cultural, o provincianismo e a ausência de instituições de educação tornavam a cultura do Brasil desse tempo um elemento acessório, quase sempre ornamental, como muitas vezes ainda é hoje", explica João Adolfo Hansen.

Elisiário vagava desnorteado pelo Rio de Janeiro porque, até o Segundo Reinado, homens pobres e livres tinham pouco trabalho, que era todo executado por escravizados negros. Era um homem vaidoso, que não concluía estudos nem se dedicava com afinco às letras — embora fosse um bom conversador.

Neste conto, há mais um elemento fundamental: Elisiário se casa com D. Jacinta, mulher apaixonada por suas ideias e filha de Dr. Lousada, um protetor rico que pode garantir a tão sonhada estabilidade financeira ao protagonista. Iludida pela aparência de brilho de Elisiário, ela incentiva o marido a escrever um romance, um drama, um poema. Mas ele não consegue, pois é fruto desse processo cultural e social erradio, de pouco trabalho efetivo. É como diz o narrador no final do conto: apesar de toda a capacidade do personagem, "o gosto da palavra morria".

"Machado sabia que o potencial do Brasil como nação nunca poderia ser explorado se não tivéssemos políticas com continuidade nas áreas de educação e cultura, algo que, até hoje, nunca tivemos", afirma João Cezar de Castro Rocha citando, como exemplo, a recente discussão sobre taxação de livros.

Para o professor Vitor Cei, a frase machadiana citada acima também tem relação com a retórica caricatural usada por muitas figuras de destaque no Brasil dos últimos anos. "Frases feitas servem de instrumento frágil apenas para a conquista e a manutenção do poder, enquanto artistas, educadores e cientistas seguem sendo atacados e desvalorizados."

'Mariana'

O conto publicado em 1871 retrata a lembrança de Mariana, "uma gentil mulatinha nascida e criada como filha da casa", mas que não podia se sentar à mesa e nem ir à sala de visitas, já que era escravizada. Quem fala da personagem na história é Coutinho, o senhor branco por quem ela se apaixonou perdidamente, mas com quem nunca teve qualquer relação amorosa. Sem saída, ela escolhe acabar com a própria vida e ele, anos depois, revela aos amigos que nunca foi amado por nenhuma mulher como tinha sido por Mariana.

"Esse conto é extremamente eficaz no modo como representa o horror dessas relações sociais naturalizadas pelos personagens, ou seja, a naturalização da extrema violência de brancos proprietários e negros escravizados no Brasil do século 19", afirma João Adolfo Hansen.

Para Eduardo de Assis Duarte, é importante destacar que a trama apresenta a impossibilidade de um diálogo interclassista e interracial. "Em grande medida, a exploração escravista prosseguiu de outras formas no país, seja através de 'agregados' ou 'crias da casa', como Mariana, que seguem trabalhando em troca de cama e comida, seja pela via do salário de fome."

O professor da UFMG também aponta que o conto retrata a posição da mulher negra no Brasil, que permanece marginalizada. "A empregada de hoje cumpre a função da antiga mucama. Desqualificada para o mercado devido ao pouco acesso à educação, torna-se faxineira, babá ou cozinheira." Assim como Mariana, domésticas em geral sentem-se em dívida com os patrões, como se precisassem "pagar com muito reconhecimento a bondade de sua senhora".

Para João Cezar de Castro Rocha, Machado usou um tom trágico na história para acentuar as consequências de vivermos em uma sociedade em que não temos direito completo à própria subjetividade. "Assim como aconteceu com Mariana, muitos deixam de ser sujeitos por serem diferentes."

'Três tesouros perdidos'

Primeiro conto publicado por Machado de Assis, em 1858, a trama mostra o personagem Sr. F... assumindo saber a verdade sobre um possível amante de sua esposa, Dona E..., mesmo sem comprovação. Para se livrar do homem que acredita atrapalhar sua vida amorosa, denominado Sr. X?, o "marido prevenido" paga uma boa quantia em dinheiro para que o antagonista se mude para outro estado. Quando chega em casa, Sr. F descobre que a mulher tinha ido embora com seu melhor amigo, P..., o verdadeiro amante.

Apesar de o conto trazer elementos estruturais próprios de peças teatrais, Machado estava testando possibilidades. Opera com os próprios elementos para produzir comicamente a brevidade e a aceleração do que narra. "Nesta história, os personagens não são individualizados com nomes próprios, mas representados por letras maiúsculas, que indicam sua função como personagens, não como indivíduos particulares", explica João Adolfo Hansen.

No livro "Contos (Quase) Esquecidos", essa história aparece como parte de um eixo temático denominado "desrazão", um tipo de narrativa que delineia o cruzamento da insanidade com lucidez. Para Vitor Cei, essa é uma das chaves do olhar machadiano sobre o mundo e os homens. "A desrazão quer salvar de coisas que nunca existiram e acabam incitando uma atmosfera de agressividade emocional irracional."

Para João Cezar de Castro Rocha, assim como o personagem principal do conto, o Brasil também perdeu três tesouros nos últimos anos de sua história, talvez por uma desrazão coletiva, que merecem ser refletidos e avaliados sob a luz crítica deixada por Machado. "O primeiro tesouro perdido é a ética do diálogo, substituído pela retórica do ódio, o segundo é a noção do bem comum e o terceiro é a diferença entre fato e rumor."