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Fim de semana ou f*da-se? Diga o que é 'fds' e diremos sua idade

Nina (16) e o pai Ivan Conha (35), tentam se entender em internetês - Arquivo pessoal
Nina (16) e o pai Ivan Conha (35), tentam se entender em internetês Imagem: Arquivo pessoal

Júlia Pessôa

Colaboração para o TAB, de Juiz de Fora (MG)

22/12/2020 04h00

Enquanto revisava a apuração para a matéria que você lê, respondi, numa janela do WhatsApp: "Antes do fds". Ri pela metalinguagem, e adianto que, como boa millennial de 1985, referia-me ao "fim de semana".

Recentemente, um curioso impasse linguístico chamou atenção no Twitter: "fds" seria sigla para "fim de semana" ou "foda-se"? A diferença entre os significados parece ser geracional.

Para o pessoal acima dos 30, que muito utilizou internet discada, Orkut e sala de bate-papo, as três letras referem-se, em maioria, ao descanso semanal. Já para a boa parte da juventude tiktoker, que nunca soube o que é esperar a meia-noite para navegar usando "só um pulso" telefônico, a abreviação equivale à expressão afrontosa.

Segundo Tania Shepherd, linguista e professora da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), atribuir as mudanças na linguagem apenas ao meio seria um argumento reducionista, um determinismo tecnológico. A pesquisadora, uma das organizadoras da coletânea "Linguística da Internet" (2009), acrescenta, entretanto, que as mudanças vêm principalmente de movimentos característicos da língua em seu uso ao longo do tempo, e que já foram mapeados a partir da escrita e da fala.

"As línguas não são objetos estáticos. Com o uso, inúmeras e graduais mudanças ocorrem na pronúncia, na forma e no significado. Além disso, como esses significados são co-construídos socialmente, através da interação humana, as palavras e expressões podem mudar de significado ou incorporar novos sentidos."

'Internetês' segue regras da língua portuguesa

Num grupo criado no WhatsApp especialmente para esta entrevista, conversei com o publicitário Ivan Cunha, 35, e sua filha Nina Silva Cunha, 16. Embora tenham até muito mais interesses, hobbies e referências em comum do que boa parte dos pares de pai e filha, ambos reconhecem que o vocabulário que usam na internet pode ser um idioma estrangeiro entre eles - ou pelo menos teria potencial para isso.

"No geral, a gente acaba usando expressões em comum, mas rola direto de eu pedir pra Nina me explicar alguma expressão que eu vejo na internet e não conheço", diz o pai, e a filha logo exemplifica. "Rolou outro dia, quando ele me perguntou o que era 'cringe'. Acontece mais assim, de ele ver alguma coisa online e me perguntar o que é, porque quase nunca uso expressões que ele não entende."

'cringe' é emprestada do Inglês e no "internetês" refere-se a algo constrangedor, que causa nervoso. É como se fosse 'vergonha alheia', mas um pouco mais angustiante.

Anglicismos como 'cringe', aliás, são comuns na linguagem digital — assim como siglas e abreviaturas, como explica a linguista Luciani Tenani, professora da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

"As abreviaturas têm, ou tiveram, a função de encurtar o tempo de digitação em ambiente digital e/ou pela limitação de caracteres digitados: 'vc', 'pq'... Mas isso passou a ser também traço de um modo de escrever. Já expressões como 'stalkear' ou 'shippar' têm como raiz é uma palavra do inglês ("stalk", "ship") e a morfologia segue o padrão da primeira conjunção verbal (-ar), a mais produtiva do português. É um processo característico de empréstimo linguístico. Portanto, o 'internetês' segue regras morfológicas da língua portuguesa".

"Stalkear" é um neologismo derivado do inglês "stalker", perseguidor, que é usado para quando se bisbilhota as redes sociais de alguém. "Shippar", por sua vez, deriva de "relationship", e é quando você torce para um casal ficar junto. Funciona assim: Se você acha que João e Maria têm tudo a ver, você "shippa" João e Maria.

'O streamer vai levar um strike de dmca por causa de tos da Twitch'

Nem só o passar do tempo e a evolução tecnológica impactam as transformações nas línguas. Foi o que me relataram Ivan Cunha, 35, e Nina Silva Cunha, 16, pelo WhatsApp. "Quando a Nina teve a fase K-poper dela (que graças a Deus acabou), ela falava frases inteiras em que eu só entendia umas três palavras — e olhe lá. Aí, toda hora eu tinha que ficar pedindo pra ela me explicar o significado de cada uma das expressões. Era dureza!".

A filha confirma: "Nessa época, eu usava muitas expressões bem específicas do K-pop mesmo, então fazia zero sentido para pessoas que estavam lendo de fora kkk". Pergunto aos dois se conseguem pensar em alguma frase que escreveriam sem que o outro entendesse.

"Ah, acho que alguma referência que venha dos tempos de Orkut ou de Fotolog, coisas de mIrc e tal, ela com certeza não iria sacar. Só que como todas essas coisas acabaram, acho que uso mais essas expressões com quem viveu a época. Mas tenho certeza que ela tem milhares de coisas pra falar que eu não iria entender hehehehehe", prevê corretamente Ivan.

"Por exemplo, se eu tô vendo uma live de um evento, eu podia falar: 'acho que esse streamer vai levar um strike de dmca por causa de tos da Twitch, mas o chat todo tá spammando catJAM'. Isso ia meio traduzir para: 'acho que esse streamer vai levar um aviso por usar uma música contendo copyright indevidamente por conta das regras da Twitch, mas o chat de pessoas assistindo ao vivo tá spammando um emote da Twitch que é um gatinho dançando", demonstra Nina. "É, isso se ela não traduzir eu não entendo nada", confirma ele.

Twitch é uma plataforma de streaming e "emote" são emojis específicos usados em seu sistema.

"Com as demandas do uso, alguns significados de uma mesma palavra podem ficar circunscritos a uma era, um grupo, uma comunidade de prática (de profissão, ocupação) ou a um gênero textual específico", explica Shepherd, citando como exemplo emoticons como : -) ou :- (. Hoje substituídos por emojis, gifs e figurinhas nas conversas instantâneas, eles buscavam, entre os anos 1990 e 2000, ilustrar emoções e estados de espírito graficamente. Como prega o meme, "só quem viveu sabe".

"Ser purista com o 'internetês' é como enxugar gelo"

Professor de Teoria da Literatura do departamento de Letras da UERJ, Felipe Mansur também já lecionou para ensino fundamental e médio. Segundo ele, o "internetês" aparece pouco na produção textual de estudantes de todas as idades.

"O contexto da 'redação escolar', independentemente do gênero textual proposto, acaba por neutralizar certas práticas informais de linguagem, como a gíria e as formas reduzidas típicas da linguagem cotidiana do texto de internet. Às vezes, parece sedutor acreditar que as dificuldades com o uso da pontuação, sobretudo da vírgula, e da inicial maiúscula tenham se intensificado a partir da utilização maciça de redes sociais, mas a mim parece que essa é uma questão mais antiga, relacionada aos problemas típicos de escrita de quem ainda não desenvolveu hábito de leitura um pouco mais sofisticado."

Mansur acredita também que o uso da linguagem característica das redes não é, como há quem diga, "um mal a ser combatido" no contexto educacional ou escolar. Pelo contrário: reconhecê-lo e compreender seu uso pode ser uma ferramenta fundamental de formação, como ele destaca.

"O modo de expressão dos alunos não pode ser encarado como um problema a ser silenciado, visto como 'pobre' ou 'errado'. O papel do professor é demonstrar que, a partir de diferentes contextos de interação social, cada indivíduo deve se valer de diferentes registros de linguagem. O ato de se comunicar é social, portanto, o professor que cumpre um papel de formação cidadã precisa indicar aos alunos que a expansão de suas experiências de linguagem lhes proporciona mais segurança, capacidade e poder de se colocar no mundo de forma engajada, consciente e autônoma. Só assim se justifica o domínio da norma padrão, a norma escrita, como instrumento de inclusão e transformação social."

Tania Shepherd também argumenta neste sentido. "Como linguista, vejo que a tentativa de ser purista com relação à linguagem usada digitalmente é como enxugar gelo. Por fim, acho que mais importante do que como se fala na internet, é o que se fala", pontua.

Ao ler "bom fds", portanto, certifique-se do contexto.