Imagens de orixás somem misteriosamente após enchentes em Itacaré (BA)
Os últimos dias de 2021 no Quilombo D'Oiti, em Itacaré, foram assustadores. Celebrada pelo cenário paradisíaco do litoral sul da Bahia, a cidade foi uma das muitas atingidas com as fortes chuvas de dezembro. O quilombo, na beira do Rio das Contas, foi invadido pela água na Noite de Natal.
Enquanto a comunidade festejava a data no centro da cidade, Jorge Rasta, idealizador do espaço, estava sozinho quando a água chegou a 1 metro de altura. Ficou ilhado durante horas. "Parecia um filme de terror. A praia tinha virado uma cidade destruída, com móveis e geladeiras no mar", diz. "Os mais velhos disseram nunca ter visto uma cena assim. É duro deparar com a fragilidade...", interrompe o relato, emocionado.
A força da correnteza fez estragos durante semanas, invadindo 2022 com notícias de barragens rompidas, pontes submersas e casas destruídas. Por segurança, o Quilombo D'Oiti, fazenda modelo de educação, ficou inabitável até fevereiro. Foi quando Jorge voltou ao lugar para contabilizar os danos: perderam-se milhares de mudas de cacau, plantas medicinais colhidas e catalogadas, animais e o gerador, recém-comprado e parcelado em 24 vezes. "A torrente arrancou o cais que construímos. Foi um choque. Estamos desde dezembro sem energia."
Demorou ainda alguns dias para que ele notasse uma perda mais valiosa: seus pequenos Orixás, esculpidos no brilho avermelhado do cobre, já não estavam mais guardados num armário, como deixara antes da inundação.
Composta por 14 esculturas, a coleção "Nimoribanda" foi confeccionada ao longo de quatro anos pelo educador e estava em processo de curadoria para mostras e posterior leilão. A ideia era que as peças fossem expostas em cidades da região, incluindo, como destino final, a cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, palco importante nas lutas pela independência da Bahia.
Dez esculturas desapareceram, deixando para trás apenas a base de madeira na qual estavam engenhosamente montadas. Não tinha como aquilo ser obra da fúria das águas.
"Não vou dar uma conotação mágica, espiritual, não posso fazer isso", Jorge explica. "Muitas coisas de valor estavam expostas. Botijão de gás, eletrodoméstico. Foi um furto. O mistério é: quem é que viria no quilombo roubar apenas os orixás?", questiona.
O sumiço
Jorge Rasta tem 55 anos e nasceu nas palafitas de Alagados, em Salvador. Conta que via, desde sempre, o lixo como fonte de riqueza e arte. Na região, o quilombo acaba servindo de destino de toneladas de lixo eletrônico. "As pessoas me mandam de Salvador geladeiras, monitor de computador...", conta. As peças e fios viram obras de arte e utensílios.
Ele encara o ofício como um processo sobretudo espiritual. Foi assim ao usar o cobre da sucata para criar esculturas dos orixás do candomblé. "Já fui chamado de hippie, sou meio brucutu, fui sargento do Exército, fui preso com maconha e voltei a ser professor. A arte que foi expressa ali nas peças, não posso dizer que fui eu que fiz, irmão", explica, com a voz grave e calma, por telefone, numa parte remota da vila em Itacaré. O vento e o latido de um cachorro são ouvidos ao fundo na ligação.
Há anos, Jorge reúne ali práticas de culinária, pesca e dança. Começou com a Casa de Bonecos, mais ao centro da cidade, e nos últimos anos estendeu seus trabalhos num terreno que passara pelas mãos de estrangeiros. O Quilombo D'Oiti acabou se tornando um ponto turístico longe da rota tradicional "para gringo ver".
A discussão sobre reparação histórica é um dos alicerces ali — e guia a forma como o espaço dialoga com a comunidade e os turistas. "A comunidade aqui é educada parao turismo. Somos um lugar de resistência", explica Jorge. "Não fazemos nossa arte só por entretenimento e por dinheiro. Costumamos dizer que não somos um produto turístico, mas temos um produto turístico." Conta que, por isso, não são incomuns discussões com pousadeiros e moradores evangélicos.
As peças desaparecidas variam entre 12 e 40 centímetros e pesam cerca de quatro quilos cada uma. A primeira imagem construída foi Xangô, senhor da justiça e da riqueza, do qual ele é filho. A chegada da pandemia foi um momento sensível. Com cortes nos subsídios para manutenção do espaço e as consequências de uma anemia, Jorge se dedicou a outros orixás: vieram Oxóssi, Oxumarê, Omolu, Exu, todas feitas com o primeiro metal trabalhado pelo homem - amassado e torcido para dar forma e movimento nos mínimos detalhes. "A gente vê todo o proveito que essas peças têm na produção de tecnologia, que depois é descartado no lixo. Assim, a riqueza oriunda dos orixás pode voltar a eles", conta o mestre.
Os defensores
O roubo dessa riqueza fez Jorge avisar todos os moradores da vila e ferros-velhos da cidade e regiões. Chegou a ir à polícia, mas foi orientado a fazer o boletim de ocorrência pela internet. "Eu não acredito que as peças retornem por esse viés", diz, lamentando. Mais recentemente, ele anunciou a recompensa de R$ 2 mil para quem tiver pistas do paradeiro das obras. Ainda não recebeu nenhuma informação. "As pessoas me perguntam se eu suspeito de alguém. Eu não tenho o mínimo de coragem de levantar uma suspeita."
O que ficou de mais palpável do mistério são os pequenos objetos de cobre acoplados aos orixás. Ficaram pelo chão coroas, asas e o cajado de Oxalá. Para Jorge, um indício do autor do suposto roubo ter sido mais cuidadoso que a água. "Da maneira com que fossem puxadas, essas peças poderiam ser desmontadas. Alguém foi cuidadoso ao retirá-las da base de madeira. Não parecia coisa feita num dia só. Aquilo levou tempo", observa.
A constatação vem como alívio. "Sem dúvida, o que mais desejo é que tenham sido roubadas para serem vendidas, e que eu as encontre de alguma forma. Saber que elas não foram desmontadas e existem em algum lugar já seria reconfortante."
Quase dois meses depois de ser castigada, a vila de pescadores começa a se reerguer. A comunidade se reúne em mutirões para reconstruir oito casas levadas pela água, além da própria fazenda modelo. Cinco famílias desabrigadas ainda estão instaladas no galpão, na parte mais alta do terreno. Os trabalhos acontecem na presença dos únicos quatro orixás que não foram roubados: dois Ibejis (divindades protetoras das crianças), Ogum e Exu — "São os defensores", observa Jorge.
Há mais de um mês sem saber do paradeiro das obras, ele conta que tem fixado na base os pedaços que caíram no chão durante a ação. Jazem ali, expostos novamente, a coroa de Oxumarê e o ofá de Oxóssi. "Eles por si só representam a entidade", acredita.
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