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Voluntário em Brumadinho e entre yanomâmis, jovem resgata até sapos no Sahy

O veterinário Enderson Barreto, voluntário do GRAD, em resgate na Bahia, em 2022 - Arquivo pessoal
O veterinário Enderson Barreto, voluntário do GRAD, em resgate na Bahia, em 2022 Imagem: Arquivo pessoal

Do TAB, do Rio

26/02/2023 04h00

O médico veterinário Enderson Barreto estava de folga no Rio quando viu pela tevê as primeiras imagens do desastre no litoral norte de São Paulo, ainda no fim de semana. Logo começou a receber pedidos de ajuda pelo celular. Voluntário do Grad (Grupo de Resgate de Animais em Desastre), Enderson não sai de casa, em Conselheiro Lafaiete (MG), sem levar junto seu kit de trabalho: uniforme, capacete e equipamentos básicos de resgate. Uma emergência pode surgir a qualquer momento e em qualquer lugar.

Na manhã de segunda-feira (20), ele e seus colegas fizeram contato com órgãos oficiais e com a Defesa Civil e se colocaram à disposição para atuar nas operações de resgate. Foi o tempo de tomar um café reforçado e partir rumo ao litoral norte de São Paulo. "Pelo número de vítimas, percebemos que a situação era muito grave. Decidimos mobilizar o grupo e ir até lá de carro no mesmo dia. Eu não ficaria tranquilo até conseguir dar resposta aos pedidos de ajuda."

Aos 25 anos, Enderson já é veterano no grupo de resgate de animais. Ele atua como voluntário desde 2019, quando, ainda na faculdade, se prontificou a ajudar nas operações de salvamento em Brumadinho (MG). Na cidade mineira, uma barragem da Vale rompeu e matou 272 pessoas. A primeira experiência foi traumática, mas definitiva. "Depois dos primeiros resgates eu decidi ir embora porque achava que aquilo não era para mim, era muito desespero. Mas, na saída da cidade, um morador emocionado me agradeceu por eu ter salvado os gatos dele. Não tinha como deixar aquelas pessoas para trás."

O grupo reveza a atuação dos voluntários, a depender da disponibilidade de cada um. Mas Enderson faz parte da equipe precursora — o grupo de linha de frente que se desloca primeiro para fazer o reconhecimento do local e organizar as operações — e, por isso, esteve em quase todos os resgates do grupo.

O veterinário se divide entre o voluntariado e o trabalho como gerente de vigilância ambiental em Conselheiro Lafaiete. Para estar nos resgates, ele usa os dias de férias, organizados em um banco de horas. Amigos e família tiveram de se acostumar à ausência de Enderson em datas especiais. Nos últimos três aniversários, por exemplo, ele estava fazendo resgates. "Ano passado organizaram uma festa surpresa para mim, mas eu não apareci porque estava no desastre de Petrópolis, no Rio. A minha vida pessoal é o meu trabalho voluntário."

Enderson Barreto (à esq.) no resgate da porca Pepa em Barra do Sahy, feito pelo GRAD - GRAD/Divulgação - GRAD/Divulgação
Enderson Barreto (à esq.) no resgate da porca Pepa em Barra do Sahy, feito pelo GRAD
Imagem: GRAD/Divulgação

A porca Pepa

Enderson e outros sete integrantes do Grad chegaram a São Sebastião na segunda à noite para começar a trabalhar nos resgates, mapear os abrigos e se integrar ao posto de comando. Na terça, parte do grupo foi à Barra do Sahy, onde encontraram o cenário mais devastador — foi onde Enderson realizou o salvamento de uma porca que levou quase uma tarde inteira para ser finalizado.

Brendon, um dos sobreviventes da tempestade, procurou o Grad na terça-feira para recuperar os animais que ficaram na chácara de sua família, numa região afastada da Barra do Sahy. Ele perdera o avô na tragédia e não havia retornado ao local desde o dia do temporal. A casa azul onde morava foi totalmente destruída. "Ele teve uma crise de pânico quando chegamos à chácara, então tivemos que prestar apoio emocional. Nesses desastres, algumas pessoas perdem tudo. Só sobram os animais. Por isso é essencial fazer esse resgate."

Dos quatro cães da família de Brendon, apenas um sobreviveu. Nos escombros da casa, a equipe de Enderson encontrou a porca de estimação da família que se chama Pepa, gansos e alguns patos. A região estava praticamente inacessível. "A gente teve de levar a Pepa no colo, e não é um animal leve." O grupo se revezou durante quase uma hora de caminhada carregando o animal de 30 kg, até chegarem à estrada mais próxima. Atravessaram mata fechada, onde as árvores estalavam e alguns barrancos ameaçavam desabar. Em alguns trechos, a lama passava da altura dos joelhos. "E fizemos todo esse resgate correndo porque começou a trovejar e ia chover de novo".

Enderson Barreto (à dir.), no resgate em Barra do Sahy - GRAD/Divulgação - GRAD/Divulgação
Enderson Barreto (à dir.), no resgate em Barra do Sahy
Imagem: GRAD/Divulgação

Pepa foi encaminhada a um lar temporário até que a família de Brendon, agora desabrigada, se restabeleça. No primeiro dia, o GRAD resgatou 50 animais. Quando os bichos não podem ser identificados, são levados para adoção e os mais debilitados são atendidos em uma clínica parceira na região. O resgate de animais é um trabalho especializado, já que cada espécie tem um comportamento diferente e cada indivíduo reage de forma distinta à presença humana.

Além dos animais domésticos, a fauna local também sofre o impacto dos desastres. Enderson e seus colegas encontraram doze sapos silvestres presos em um tanque na Vila Sahy. Os animais foram recolhidos e levados a um rio próximo. Quando esteve no Pantanal, em 2020, ele fez o resgate de onças-pintadas feridas pelas queimadas. Em Brumadinho, precisou atender vacas, cavalos e animais que estavam na área industrial. Em Petrópolis, resgatou peixes de uma vítima que falecera pouco antes para entregá-los a um amigo do antigo dono. "Parece estranho alguém se ligar tanto a um peixe, mas todo animal importa", diz Enderson, que tem seis cães e três cavalos.

A vida do veterinário se resume a pular de um desastre para outro país afora. Há duas semanas, ele estava no desastre humanitário do território yanomâmi, em Roraima, onde teve a experiência mais marcante da vida. Em um dos voos que fez entre o território indígena e Boa Vista, Enderson prestou os primeiros socorros a uma recém-nascida que teve parada cardiorrespiratória. Como não havia oxigênio suficiente na aeronave, a bebê morreu antes de chegar à cidade. "Foi diferente de tudo que eu já vivi. Isso escancarou a fragilidade em que estavam essas pessoas."

Além de salvar os animais domésticos dos yanomâmi — que também estavam desnutridos — e prestar apoio a sobreviventes, o GRAD trabalhou em Roraima para identificar e tratar zoonoses (doenças infecciosas transmitidas entre animais e pessoas). Em uma das operações, Enderson encontrou um idoso indígena que estava com alta infestação de tungíase (doença de pele causada pela pulga bicho-de-pé). Como o idoso já não conseguia mais andar, o Grad conseguiu apoio áereo para levá-lo à capital.

Algumas cenas sempre se repetem em tragédias ambientais e humanitárias. Além do desespero inicial, o desencontro de informações nos primeiros dias tumultua o trabalho das equipes precursoras. Mas Enderson diz que cada desastre tem suas particularidades: dependendo do terreno e do tipo de tragédia, as condições podem ser mais desafiadoras.

Em Brumadinho, por exemplo, em vez de desviar de escombros, Enderson teve que rastejar com cuidado pelo chão para não afundar na lama deixada pela barragem. Mas, para ele, a principal marca que diferencia a resposta aos desastres é a desigualdade socioeconômica. Dependendo da região — e do nível de estrutura em cada cidade —, as doações às vezes não chegam.

Apesar da correria, Enderson não pensa em largar o trabalho de resgate de animais tão cedo. "Não sei com que idade vou parar. Minha maior preocupação é arrumar mais tempo de vida para continuar fazendo isso."