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Heavy metal e música clássica têm muita coisa em comum. Artistas explicam

O músico e produtor Andreas Kisser, que também é amante de música clássica - Marcos Hermes
O músico e produtor Andreas Kisser, que também é amante de música clássica Imagem: Marcos Hermes

André Bernardo

Colaboração para o TAB

06/06/2020 04h00Atualizada em 08/06/2020 14h10

O compositor alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827) não tinha o braço tatuado, não fazia o sinal de "chifrinho" com as mãos, tampouco gostava de bater cabeça — do inglês "headbanging". Mesmo assim, pode ser considerado o mais heavy metal de todos os gênios da música erudita. Tanto que, ao ser convidado para tocar na edição de 2013 do Rock in Rio, o maestro Roberto Minczuk não pensou duas vezes: à frente da OSB (Orquestra Sinfônica Brasileira), executou duas de suas sinfonias — a quinta e a sétima — na noite de abertura do festival.

"Beethoven é heavy metal porque coloca a orquestra inteira para tocar em um ritmo alucinado por um longo período. Não satisfeito, ainda utiliza instrumentos de corda como violino, violoncelo e contrabaixo de maneira percussiva e não melódica. O resultado é uma música vibrante, que não deixa ninguém parado", garante o atual regente da Orquestra Sinfônica Municipal que, naquela mesma apresentação, mesclou trechos de "Assim Falou Zaratustra", de Richard Strauss, com "Fear of the Dark", do Iron Maiden, e "Bachianas Brasileiras nº 4", de Heitor Villa-Lobos, com "Jump", do Van Halen.

A conexão entre os eruditos e os metaleiros não é gratuita: os dois gêneros musicais valorizam o virtuosismo dos músicos e a energia das apresentações ao vivo, para ficar só em dois pontos. TAB explica mais alguns.

Batuta de Metal. Beethoven pode até ter sido o primeiro, mas não foi o único. Outro forte candidato a "headbanger erudito" é o russo Igor Stravinski (1882-1971). A estreia de sua obra mais famosa, "A Sagração da Primavera", em 29 de maio de 1913, foi polêmica, para dizer o mínimo. O público que assistia ao balé no recém-inaugurado teatro Champs-Élysées, em Paris, não entendeu a proposta e, em sinal de protesto, começou a vaiar. Os mais indignados abandonaram o local. Ao término da apresentação, 40 revoltosos foram presos. "Do ponto de vista rítmico, o heavy metal teve a quem puxar. 'A Sagração da Primavera' era revolucionária para a época. A cada compasso, mudava o ritmo. O heavy metal tem a rebeldia rítmica de Stravinski. Aliás, não teríamos heavy metal hoje se, lá atrás, não tivéssemos música clássica", afirma ao TAB o maestro João Carlos Martins.

O maestro Joao Carlos Martins e a Orquestra Bachiana Filarmônica  - Fernando Mucci - Fernando Mucci
O maestro Joao Carlos Martins e a Orquestra Bachiana Filarmônica
Imagem: Fernando Mucci

Rock erudito. Na mão contrária, o guitarrista inglês Ritchie Blackmore é, por sua vez, o mais erudito dos astros do rock pesado. Um dos fundadores do Deep Purple, em 1968, e do Rainbow, em 1975, Blackmore teve nos compositores Antonio Vivaldi (1678-1741), Georg Friedrich Händel (1685-1759) e Niccolò Paganini (1782-1840) algumas de suas fontes de inspiração. "Nos anos 1970, Blackmore gostava de incluir 'Greensleeves' — uma música folclórica inglesa — no repertório dos shows do Rainbow e, desde 1997, seu mais novo projeto, o Blackmore's Night, em parceria com a mulher, Candice Night, faz música renascentista", explica ao TAB a jornalista americana Katherine Turman, coautora do livro "Barulho Infernal - A História Definitiva do Heavy Metal" (2015), em parceria com Jon Wiederhorn. "Em 1981, a canção instrumental 'Difficult to Cure', do Rainbow, ficou famosa por revisitar a Nona Sinfonia de Beethoven, mas, muito antes disso, o álbum Shades of Deep Purple (1968) já era o pioneiro na fusão entre rock pesado e música erudita", conta Turman. Além de Blackmore, outros representantes do "metal neoclássico" são o guitarrista sueco Yngwie Malmsteen, o alemão Uli Jon Roth, ex- Scorpions, e o norte-americano Randy Rhoads, ex-Quiet Riot e ex-Ozzy Osbourne, que morreu em 1982, aos 25 anos.

Metal sinfônico para as massas... Reunir músicos tanto de uma banda de metal quanto de uma orquestra sinfônica em um mesmo palco — e registrar o encontro em LP, CD ou DVD — já virou um clássico. Uma das primeiras bandas a testar o formato foi o Deep Purple. Na noite de 24 de setembro de 1969, o quinteto inglês formado por Ian Gillan nos vocais, Ritchie Blackmore nas guitarras, Roger Glover no baixo, Jon Lord nos teclados e Ian Paice na bateria tocou alguns de seus sucessos com a Orquestra Filarmônica Real. Gravado no Royal Albert Hall, em Londres, sob a regência do maestro Malcolm Arnold, o encontro virou álbum. Outras bandas fizeram o mesmo: Metallica tocou com a Orquestra Sinfônica de São Francisco; os Scorpions e a Orquestra Filarmônica de Berlim dividiram o palco em "Moment of Glory" (2000) e o Kiss gravou sua própria sinfonia, "Kiss Symphony: Alive IV" (2003), com a Orquestra Sinfônica de Melbourne. No Brasil, o Sepultura, um dos maiores representantes do gênero, também já se apresentou com a Orquestra Experimental de Repertório. "Um projeto desses impõe desafios, como tocar no volume mínimo e usar amplificadores menores. Mas valeu a experiência. A galera pirou", recorda o guitarrista Andreas Kisser, em conversa com o TAB. "Se tivéssemos que escolher um álbum da banda para tocar na íntegra e com acompanhamento de orquestra, escolheria o Quadra (2020). Tem até coral!"

Edu Falaschi, ex-vocalista do grupo Angra - Divulgação - Divulgação
Edu Falaschi, ex-vocalista do grupo Angra
Imagem: Divulgação

...Ou sinfonia metaleira? Em setembro de 2019, o álbum Temple of Shadows, o quinto de estúdio do Angra, completou 15 anos. Para comemorar a data, o ex-vocalista do grupo, Edu Falaschi, decidiu revisitá-lo, ao vivo, e registrar em DVD. Mais que isso: pensou em convidar João Carlos Martins para reger o concerto. Não seria a primeira vez que o maestro participaria de algo do gênero. Em 1970, sob a regência de Zubin Mehta, ele e a Orquestra Filarmônica de Los Angeles participaram de The Switched-On Symphony, que reuniu o cantor Ray Charles, o grupo Jethro Tull e o guitarrista Santana, entre outros. Mas, antes de dizer sim ao convite de Falaschi, o maestro da Orquestra Bachiana Filarmônica propôs abrir o show com a Quinta de Beethoven. "O público do heavy metal tem que entender a importância da música clássica, e o público da música clássica tem que perder o preconceito e reconhecer que o metal tem seu valor", explica Martins ao TAB. Pode até não parecer, mas os dois públicos são muito parecidos entre si. Pelo menos foi o que revelou um estudo da Universidade Heriot-Watt, em Edimburgo, na Escócia. Depois de analisar a personalidade e o gosto musical de 36,5 mil voluntários, o pesquisador Adrian North concluiu que os fãs de ambos os gêneros são "criativos, introvertidos e de bem com a vida". Ao fim da Quinta Sinfonia, o público que lotava o Tom Brasil, em São Paulo, veio abaixo: "João! João!", berrava. "Isso nunca aconteceu antes", acha graça. Para Falaschi, não importa o instrumento tocado, se piano, guitarra ou violino, a habilidade técnica é a mesma. "O heavy metal herdou o virtuosismo da música erudita", afirma.

Carla Domingues, vocalista da banda No One Spoke - Toia Oliveira - Toia Oliveira
Carla Domingues, vocalista da banda No One Spoke
Imagem: Toia Oliveira

Pauleira "made in Brazil". André Coelho Matos tinha sete anos quando passou a ter aulas de piano. Na adolescência, não deu outra: o fã de Queen e Iron Maiden prestou vestibular para Música e formou-se em Composição e Regência. Com passagem pelas bandas Viper, Angra e Shaman, é apontado como um dos pioneiros na fusão entre heavy metal e música clássica no país. "São dois gêneros que demandam estudo e disciplina. Os arranjos são complexos e, por essa razão, não dão margem a improviso. Tem que estudar muito, nota por nota", afirma o guitarrista Rafael Bittencourt, colega de faculdade e de banda de Mattos, que morreu em 8 de junho de 2019, aos 47 anos, vítima de infarto. Até quem não é do gênero, como o cantor Edson Cordeiro, não resiste à simbiose entre riffs de guitarra e acordes de violino. Foi assistindo a um videoclipe da dupla norueguesa Dollie de Luxe que ele teve a ideia de convidar a roqueira Cássia Eller para um dueto inusitado em "A Rainha da Noite/Satisfaction" (1992), uma ária de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) com trechos de The Rolling Stones. "Minha ideia original era fazer as duas vozes. Mas, pouco depois, sugeri a Cássia que cantasse a parte masculina e eu, a feminina. Esse jogo andrógino pode ter sido a razão do sucesso", arrisca Cordeiro.

Divas do Metal. Bacharel em Canto pela UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e mestre em Música pela Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), a gaúcha Carla Domingues atuou como solista em óperas, concertos e recitais; apresentou-se em países como Chile, Itália e Uruguai, e até lançou um CD com árias e canções do compositor Carlos Gomes (1836-1896), autor de "O Guarani" (1870). Mas, afinal, o que uma cantora lírica está fazendo em uma matéria sobre heavy metal? Simples. Desde 2017, ela é a vocalista da No One Spoke, banda catarinense que alia o peso do metal à sofisticação do erudito. "O canto lírico no heavy metal não é uma combinação tão natural, mas é algo que tem dado certo", garante a soprano, em entrevista ao TAB. Para Domingues, quando se pensa em mulheres no metal, o primeiro nome que vem à mente é o da alemã Doro Pesch. Aos 55 anos, a ex-vocalista da banda Warlock é mundialmente conhecida como a "Rainha do Metal". "Aos poucos, o machismo vem perdendo espaço, mas ainda há resquícios dele em todos os lugares. Não há o que fazer a não ser ignorá-lo e seguir adiante, trabalhando com foco e determinação."

Errata: este conteúdo foi atualizado
A primeira versão deste texto indicava que "Smoke on the water", do Deep Purple, foi gravada no disco de 1969, mas a canção só foi composta em 1972. O texto foi corrigido.