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Diretor de 'LA Originals', da Netflix, fala do impacto da estética hip-hop

O grafiteiro Mr. Cartoon e o fotógrafo Estevan Oriol, destaques do documentário "LA Originals" - Divulgação/Netflix
O grafiteiro Mr. Cartoon e o fotógrafo Estevan Oriol, destaques do documentário 'LA Originals' Imagem: Divulgação/Netflix

Matias Maxx

Colaboração para o TAB, do Rio

28/05/2020 04h00

"Se você não tem uma tatuagem do Cartoon, você não tem uma tatuagem! Se você não foi fotografado pelo Estevan, você tem um fotógrafo fraco." A frase de Snoop Dogg abre o trailer de "LA Originals", documentário original da Netflix que conta o bromance do fotógrafo e diretor Estevan Oriol com o grafiteiro, ilustrador e tatuador Mr. Cartoon. São dois norte-americanos de origem mexicana, morando em Los Angeles, que por seus trabalhos autorais ressignificaram e elevaram a estética marginal local a um movimento artístico, o Chicano Art Movement, com seus lowriders, tatuagens em preto e branco e mulheres topetudas. Através do Soul Assassins Studios, os dois empregaram vários manos e atenderam a marcas como Nike, Vans e Rock Star Games no clássico GTA San Andreas.

A trilha original do documentário, assinada por Eric Bobo, percussionista do Cypress Hill, embala as imagens icônicas registradas por Oriol desde 1994. Contextualizam a história algumas entrevistas recentes com artistas de grupos como Cypress Hill e Blink 182, e atores como Michelle Rodriguez e Danny Trejo, todos em algum momento parceiros da dupla.

No entanto, um dos maiores destaques do documentário está na participação do sem-teto Pepper, de 51 anos, auto-intitulado prefeito de Skid Row (a cracolândia de Los Angeles, onde ficava a sede do Soul Assasins Studios). Outro personagem forte é Lepke, um ex-gângster que leva literalmente um balde de água fria para ser removido da calçada em frente ao estúdio, onde jazia chapado de heroína, minutos antes da chegada de clientes importantes.

A história começa nos anos 1990, quando Estevan Oriol, um sujeito grande, trabalhava como segurança na boate onde conheceu membros das bandas House of Pain e Cypress Hill. Fez amizade e logo foi convidado para ser produtor de palco de suas turnês. Oriol ganhou um câmera do pai, que era fotógrafo profissional, e começou a documentar aquela cena. Mais tarde ele traria Mr. Cartoon para o bonde, um criador de logomarcas, ilustrações e cenários para as bandas, inspiradas na estética de ilustrações de prisioneiros de origem latina que ele conheceu em suas várias passagens pelo sistema carcerário, por crime de grafite.

Assim como as fotos supercontrastadas viraram a assinatura de Oriol, Cartoon criou um estilo próprio de tatuagens em preto-e-branco e cativou uma clientela de estrelas como Travis Barker, Eminem, 50 Cent, Beyoncé e o ex-jogador de basquete Kobe Bryant, morto em janeiro de 2020. Não seria exagero dizer que, até a chegada de Cartoon, rappers e atletas norte-americanos negros ou de ascendência latina não se tatuavam tanto.

O filme começa com o ritmo alucinado das turnês dos anos 1990, mostra a evolução artística e profissionalização dos caras nos anos 2000 e o racha na década seguinte, num mundo que viu a fotografia se desvalorizar cada vez mais, enquanto as tatuagens de Cartoon iam pela via contrária, chegando a valer US$ 50 mil. Estevan Oriol mostra o desgosto com a gentrificação do centro de Los Angeles, com "seus bares de suco e 'parques para poodles'", assim como com o fato de ter apenas 115 mil seguidores no Instagram, enquanto "qualquer idiota tem mais de um milhão".

Após o lançamento do documentário na Netflix, o número de seguidores pulou rapidamente para mais de 375 mil e o filme chegou a ser o quarto mais visto na plataforma, nos Estados Unidos, em seu mês de estreia. A pandemia de Covid-19 impediu uma maior capitalização desse momento. Estevan conversou com TAB sobre o filme, suas visitas ao Brasil e o momento quase distópico que a Califórnia vive.

TAB: A população de rua é muito vulnerável ao novo coronavírus. Fiquei preocupado em saber como anda o Pepper.
Estevan Oriol:
Vou quase todo dia pra Skid Row. Hoje encontrei o Pepper e dei US$ 20 a ele para que ele tenha o que beber e comer pelo resto da semana, porque as pessoas que costumavam ir lá levar roupas, comida e ajuda não estão mais indo. Como todas as minhas coisas estão num depósito, estou lá o tempo todo para enviar livros, camisetas e máscaras que vendo online.

TAB: Você dirigiu todas as entrevistas do filme?
EO: Estava lá o tempo todo, durante as entrevistas. A maior parte do filme é de material de arquivo meu. A galera quer ver os anos 1990, né? E também o início dos 2000, quando as coisas estavam acontecendo. Olha como as coisas estão agora: quando você acha que vai ter o próximo carnaval no Brasil? Ou mesmo uns shows? Com muita esperança eles vão conseguir controlar a Covid-19 e vamos voltar ao normal, mas é meio zoado enquanto sociedade. As pessoas estão fazendo aniversário, outros dirigem até suas casas para cantar parabéns. Vinte carros, todo mundo passando em frente a uma casa para dizer feliz aniversário de dentro dos carros, filmando com telefones. É duro, mas é o que é.

TAB: Pelo menos as pessoas têm tempo de assistir a seu filme na Netflix...
EO:
A coisa mais louca é que todo mundo está dentro de casa agora. Alguns não ligam porque é o que fazem o tempo todo, mas eu ligo, sou um cara das ruas. Todo o meu trabalho é com pessoas. Eu tinha cinco grandes trabalhos alinhados e todos já eram, então não sei quando vou poder trabalhar de novo. Não ganho grana diretamente com o sucesso do filme. Fui pago para ceder as imagens e dirigir o filme. Mas estar entre os mais assistidos nos Estados Unidos é realmente incrível.

TAB: Conta sobre suas vindas ao Brasil. Como foi?
EO: Estive no Brasil pela primeira vez em 1996 com o Cypress Hill, como parte da turnê sul-americana. Foi ótimo. Fãs e patrocinadores ficavam malucos, porque muitas bandas norte-americanas, bandas grandes, não costumam ir a lugares muito distantes, seja lá por qual razão. Com o Cypress, teve um momento em que, depois da turnê passar por EUA, Europa e Tóquio, a gente se perguntou, "E aí? O que mais queremos fazer?" A gente quis ir a outros lugares, e começamos a escolher no mapa lugares diferentes. Fomos ao Rio, a Buenos Aires, Santiago, Caracas... Sempre foram as melhores vibes. Latinos de todo o mundo sempre nos deram muito amor, porque somos latinos também. Anos depois voltei contigo e com Cassiano, fotografando as garotas, as favelas, o hip-hop, tatuagens, pistas de skate, grafite, lowriders [carros tunados]... Vimos a cena lowrider na Mooca, foi uma das melhores épocas na minha vida. Porque geralmente, quando a gente faz uma turnê, não consegue conhecer aquele país direito. Aquilo foi o jeito certo de ver o Brasil para mim.

TAB: Cypress Hill é talvez uma das bandas mais maconheiras do planeta. Como vê a legalização da maconha na Califórnia?
EO: O que não poderia ser bom a respeito disso? Maconha não é nem de perto tão ruim como álcool ou cigarro, que são legalizados. Se você não está machucando ninguém a não ser você mesmo fumando um cigarro, você deveria poder fumar um baseado. Fizeram a coisa certa legalizando, é natural, é bom para várias condições de saúde, deixa as pessoas tranquilas. Qual era o problema, todos esses anos? Tanta gente indo para a prisão, por tantos anos? Toda a militância do Cypress Hill, desde os anos 1990, foi boa para a cultura canábica. E todo mundo está fazendo dinheiro com isso, o governo... Todo mundo, do topo ao mais baixo.

TAB: Quando viaja hoje em dia, você acha que as pessoas odeiam mais os Estados Unidos por causa de Donald Trump?
EO: Sempre que viajei para fora foi assim. Quando a gente tinha o Jimmy Carter, todo mundo achava que ele era um caipira idiota. Com [Ronald] Reagan e [George] Bush, todos achavam que eles eram nazistas, uns desgraçados da pesada. Aí veio Bill Clinton e todo mundo achava que ele era muito bonzinho, e de repente ele virou "bad boy" por causa de um boquete. E temos [Donald] Trump, que é tipo um playboy da velha guarda, um riquinho que "quer pegar as mulheres pela boceta". Que orienta pessoas a injetarem alvejante para matarem o coronavírus. Tínhamos de ter alguém que fosse um bom administrador e um ser humano respeitável, que não ofenda todo mundo, não um baba-ovo, mas alguém que não fique só falando merda no Twitter.

TAB: Como está a situação de Los Angeles com a Covid-19?
EO: As pessoas não sabem o que está rolando, não sabem qual será o próximo passo, ninguém sabe o que vai acontecer. Dizem que vão trazer a Guarda Nacional e colocá-la nas ruas, para fazer todo mundo ficar em casa. Isso deixa as pessoas amedrontadas, pensar que haverá militares nas ruas, tipo lei marcial. Vimos isso acontecer em 1992, durante os distúrbios após o julgamento de Rodney King. As ruas estavam selvagens, ninguém tinha o controle. Aí chamaram a Guarda Nacional e era um bando de garotos de 18 anos do centro-oeste. A galera ficava puta. Esses caras podem ser soldados e vestir uniformes, mas não são daqui. Todo mundo é adulto e não quer ser mandado de volta para suas camas, feito crianças.

TAB: Como é ver a cultura e a estética que vocês ajudaram a divulgar florescer em lugares tão díspares como Mooca, em São Paulo, e Okinawa, no Japão?
EO: Foi como um sinal de respeito e reconhecimento, eles estavam nos mandando amor, assim encarei. Eu achava a coisa mais maneira, estar num lowrider em outro país. No Japão tive a oportunidade de dirigir um lowrider e apertar os botões da hidráulica. Quem iria pensar que eu estaria dirigindo um lowrider do outro lado do mundo? Muitas pessoas na minha cidade não aceitam esse estilo de vida. Para eles, é como nos filmes: acham que a Queen Latifah vai sair de um Impala 64 e roubar um banco. Não sabem que a gente gasta muito dinheiro reformando aquele carro, pintando com uma cor única, cromando tudo, trocando as peças todas, motor novo, interior novo, colocando a hidráulica, as baterias e um som potente. Tudo isso para ir roubar um banco? O jeito que Hollywood retrata é sempre negativo, com membros de gangue, pessoas morrendo.

TAB: Como é ver cenários que você fotografou desaparecerem com a gentrificação?
EO: Me sinto bem ferrado. Removeram vários lugares históricos da nossa cidade. E esses lugares não apenas tinham um visual maneiro, mas deram alegria a muitas pessoas, fazem parte da memória de muitas pessoas. Conectam com seu passado, com o passado de quem amavam. Quando você derruba algo como a ponte da Sixth Street... Aquela era a minha rua favorita para dirigir em Los Angeles, porque da maneira que a ponte era, e a vista que você tinha dirigindo sobre ela, de East LA até Downtown, num lowrider, era a coisa mais cool que já existiu. Tinha certeza de que toda vez que eu levava meu lowrider para o centro, iria passar sobre essa ponte. Deve ter sido a rua onde mais dirigi. Derrubaram a ponte falando que o cimento tinha câncer. Nunca tinha ouvido falar disso, mas sim, falaram que o cimento tinha câncer. Sei que madeira apodrece, mas não vejo uma maneira ou razão para você demolir a ponte inteira se tem de algo errado com ela. Porque não consertar?

TAB: Como foi a parceria com a Rock Star Games para criar o visual do GTA San Andreas?
EO: Eles precisavam de fotos da cidade para desenhar o game, e a equipe era da Escócia. Numa semana, toda a galera da Rockstar veio a Los Angeles. Eles me colocaram para passear com os caras que iam desenhar os cenários, só que eles queriam descer do carro para fazer fotos. Você sabe que não funciona assim: cinco caras brancos num carro, descendo pra tirar fotos da quebrada o tempo todo? Então eu disse: me deem uma câmera digital, porque só fotografo com filme, e eu faço fotos da cidade toda pra vocês, depois envio os CDs. Foi isso que fizemos. Cartoon fez umas artes que eles colocaram nas paredes e outros lugares do game. Também colocamos alguns amigos pra fazerem as trilhas sonoras, foi uma parada maneira e que amamos fazer.

TAB: Fiquei feliz que nos créditos de agradecimentos do LA Originals, entre o nome de vários amigos que já nos deixaram, está o do Mr. Catra.
EO: Um grande salve para o Mr Catra, descanse em paz. Ele foi um mano muito maneiro conosco, nos mostrou tanto amor, foi um dos momentos mais divertidos do Brasil dar um rolé com ele. Eu dediquei um post a ele no meu Instagram.

TAB: Me conta: você sempre contratou pessoas egressas do sistema carcerário, né?
EO
: Na época em que a gente fundou a marca Joker, a gente só contratava caras que tinham acabado de sair da prisão, por que nos EUA, quando você vai tentar uma vaga de emprego, preenche um formulário com nome, endereço, se já foi acusado ou condenado por um crime e, se sim, como, onde, onde e por quê. Só depois disso eles perguntam suas habilidades e formação. Assim que você marcou a opção "condenado", já era. Não faz nem sentido preencher mais nada, porque ninguém vai te contratar. Precisávamos de gente afim de trabalhar, que não fossem preguiçosas. E colocávamos para trabalhar fazendo todo tipo de coisa, e funcionou bem.

TAB: Lepke era um desses né? Aquela cena da água fria na cara é demais!
EO
: Ele ama essa cena. Ela conta uma história real, que pode tocar um monte de gente. Um cara que esteve na sarjeta, que usou drogas, que esteve na prisão. Muita gente passa por isso e não consegue superar, e ele pode ser aquele cara que mostra às pessoas, 'ei, eu estive lá no fundo do fundo, e agora estou ajudando outras pessoas'. Ele administra a "Sober Living", um casa para quinze pessoas que saíram do rehab [clínica de desintoxicação]. Ele ajuda essa galera a se manter sóbria, e arrumar um emprego para conseguir seu próprio lugar e sair de lá, e aí chama mais uma pessoa para ocupar a vaga.

TAB: E como foi pra você ficar sóbrio? Você teve ajuda?
EO: Não. Decidi que queria mudar e fazer algo novo. A galera que trabalha para corporações são caretas e não acham maneiro. Eles pensam assim: 'como vou dar uma grana pra esse cara fazer o trabalho que eu quero que ele faça?' Eu e Cartoon sabíamos que poderíamos fazer bons trabalhos e entregar, mas para convencê-los, e para que eles confiassem, a gente ficou sóbrio, e acabamos conseguindo muito trabalho para grandes marcas e deu tudo certo.