Legado de Trump, desinformação com selo oficial pede ação além de checagem
Quando assumir a Casa Branca nesta quarta-feira (20), o democrata Joe Biden terá como desafio não apenas tirar os EUA da crise sanitária e econômica causada pela pandemia de covid-19. Ele terá de liderá-la enquanto sua própria legitimidade política foi posta em xeque por uma campanha de desinformação criada em grande medida pelo antecessor, o republicano Donald Trump.
Uma pesquisa da companhia de inteligência de dados Morning Consult, conduzida entre 8 e 10 de janeiro, indicou que apenas 22% dos eleitores republicanos acreditam que a eleição americana de 2020 foi "livre e justa". Já um levantamento do Pew Research Center, divulgado dia 11, identificou que a descrença é maior entre republicanos que tinham Trump como principal fonte de notícia: 60% deles disseram suspeitar que votos pelo correio não foram contados devidamente.
A desconfiança, semeada por Trump com reiteradas mentiras sobre fraude na votação, teve como consequência a invasão do Capitólio dia 6, e o aumento dos temores de que seus partidários lançassem mais atos violentos contra a democracia norte-americana. A crença nas mentiras sobreviveu, apesar das fracassadas tentativas de Trump de contestar o resultado na Justiça e dos repetidos desmentidos da imprensa e de organizações de checagem de fatos.
Desde a eleição de Trump, em 2016, aumentou em mais de três vezes no mundo o número de iniciativas que tentam combater a desinformação, segundo contagem do Reporter's Lab, centro de pesquisa de jornalismo na Universidade Duke. Esse crescimento inclui parcerias que Facebook, WhatsApp e Google fizeram com checadores para coibir informações falsas em suas plataformas. Quase 20% dessas iniciativas estão nos EUA, relata o Reporter's Lab. Mas, apesar de todo esse esforço, a desinformação vem levando vantagem.
Como explicar isso? Para Lucas Graves, professor-adjunto da Escola de Jornalismo e Comunicação de Massa da Universidade de Wisconsin-Madison, a checagem de fatos ficou em evidência como um possível antídoto para a desinformação num mundo cada vez mais polarizado pelo populismo. Mas, lembra Graves, é impossível acompanhar a maré das informações falsas e forçar políticos como Trump a parar de vender inverdades e criar narrativas de que as elites mentem e especialistas não são confiáveis. "Com a confiança na mídia e nas instituições num nível tão baixo, é difícil para os checadores terem uma influência profunda", disse ao TAB o autor de "Deciding What's True: The Rise of Political Fact-Checking in American Journalism" (Decidindo o que é Verdade: O Aumento da Checagem de Fatos Políticos no Jornalismo Americano, em tradução livre). Graves lembra que a checagem não existe para convencer as pessoas, mas como um bem democrático que fornece recursos para tomada de decisões, da mesma forma que o jornalismo. A opinião é compartilhada por Cristina Tardáguila, diretora-adjunta da International Fact-Checking Network e fundadora da Agência Lupa, para quem a missão da checagem é expor dados e não "mudar a opinião de ninguém". "Não podemos achar que só o trabalho de levar informação vai resolver o problema da desinformação", pontua.
Por que é tão difícil combater? Sérgio Lüdtke, editor do Projeto Comprova, lembra que a desinformação se espalha por sua repetição por fontes diversas. O ponto-chave é ela se valer de algum aspecto verdadeiro, interpretado de forma enviesada, que serve para confirmar crenças e formar convicções. Com bolhas digitais alimentadas por algoritmos, a desinformação se espalha mesmo quando desmentida. "No YouTube, por exemplo, as sugestões de vídeo não contradizem, mas reafirmam conteúdo. Então, acabam-se formatando as cabeças com opiniões distorcidas."
A internet é a culpada? Não são apenas as bolhas digitais que dificultam o combate à desinformação. Um estudo do First Draft, organização sediada em Londres que atua contra conteúdos falsos, investigou a disseminação no Facebook de uma teoria da conspiração. O estudo concluiu que as verificações tiveram dificuldade de penetrar nas bolhas não apenas porque os participantes consumissem a conspiração movidos via algoritmos, mas porque se engajavam ativa e coletivamente para criar um sentido conjunto à narrativa e a amplificavam. "Em vez de seguir o modelo de disseminação vertical e linear da mídia tradicional e das organizações de checagem, as teorias da conspiração são compartilhadas de forma participativa. As pessoas imersas nessas realidades alternativas não são apenas audiências passivas que recebem e aceitam a desinformação", diz a jornalista de dados Carlotta Dotto, uma das autoras do estudo.
Como melhorar o combate à desinformação? Dotto defende estratégias participativas que, em vez de focar em perseguir narrativas enganosas para contestá-las, previnam seu surgimento, dando ênfase ao "quando" e menos no "quê". Em sua visão, uma forma de a checagem se antecipar à desinformação seria pela união de esforços com comunidades com conhecimento prévio sobre determinados tópicos. Para aumentar a velocidade de ação, Tardáguila pede maior participação de profissionais de tecnologia na criação de "ferramentas que identifiquem conteúdos falsos antes que viralizem", e a maior colaboração mundial entre checadores. Também sugere tentar aumentar a capilaridade da checagem com formatos mais ousados, numa "linguagem palatável" para diferentes públicos, como idosos, jovens de periferia, policiais, médicos.
E quando vem de cima? Depois de quatro anos de governo Trump, a disseminação de conteúdos falsos e enganosos se tornou dominante e infiltrada em altas esferas de poder, como lembra Dotto. Assim, a responsabilidade de combater a desinformação não é só dos checadores, mas também das autoridades, instituições, público, mídia. Para Lüdtke, o passo crucial é entender que há um problema. "A sociedade não vai buscar soluções se não houver convicção de que a desinformação nos leva a fazer escolhas, tomar decisões, às vezes equivocadas."
Qual o papel das redes sociais? Segundo Dotto, mais do que ações individuais e pontuais de bloquear ou derrubar contas e páginas, seria necessário que elas trabalhassem de forma coordenada para evitar o tráfego de conteúdo danoso entre si. Também precisariam de uma estratégia coesa não só para reagir a campanhas de desinformação, mas para evitar seu surgimento. Além disso, Dotto aponta a necessidade de que as redes divulguem arquivos de postagens e contas derrubadas para que pesquisadores tenham acesso a material essencial "para entender melhor a eclosão da desinformação".
A saída é derrubar tudo? O bloqueio temporário à página de Trump no Facebook após a violência no Capitólio aconteceu apesar de a gigante de tecnologia não permitir que checadores parceiros verifiquem conteúdo de políticos. "Derrubaram o Trump, mas antes não deixaram checá-lo. E por que mantiveram milhares de páginas com conteúdo similar que foram checadas?", indaga Tardáguila. Para o professor Graves figuras públicas deveriam ser responsabilizadas da mesma forma, se não mais, que pessoas comuns. Ao mesmo tempo, aponta o risco de estabelecer um precedente de banir o discurso político da esfera pública. "Acho que os mesmos argumentos para bloquear Trump poderiam ser usados para suprimir discursos em outras situações, e aí está o perigo." Por isso, defende que as redes sociais prestem contas e sejam responsabilizadas de forma mais ampla não só por permitir o tráfego de conteúdo falso, mas "em muitos casos por lucrar com desinformação que viraliza e enraivece as pessoas".
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