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Entre a disrupção e a distopia: quem tem medo do futuro?

Eduardo Suplicy na palestra "Renda básica universal: o que dizem os futuristas" no Festival Path - Marcelo Justo/UOL
Eduardo Suplicy na palestra "Renda básica universal: o que dizem os futuristas" no Festival Path Imagem: Marcelo Justo/UOL

Matheus Pichonelli

Colaboração para o TAB, em São Paulo

04/06/2019 04h00

"Preciso mesmo investir nisso?"

Não, não era uma escolha sobre aplicações e rentabilidade.

Era o receio de ser picado pelo mesmo vírus que se alastrava entre amigos e familiares.

Celular, até então, era um telefone de bolso. Servia para receber e atender ligações. Por que colocar num polegar o que eu poderia ver na amplitude (risos) do computador? Por que não economizar aquele dinheiro para comprar, sei lá, um home theater ou uma coleção de DVDs? Era junho de 2013 e, embora ainda não soubesse, muita coisa estava para explodir - em casa e nas ruas do país.

Matheus e Miguel Pichonelli - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Logo de cara, Miguel levou conexão e home office para a vida de Matheus
Imagem: Arquivo Pessoal

Foi, talvez, meu primeiro encontro com a macro história. No dia 6 daquele mês, meu filho nasceu prematuro e com pouco mais de um quilo em um parto de emergência em uma maternidade longe de casa, o que nos obrigou a alugar um quarto de pensão para facilitar a logística das três visitas diárias.

No mesmo dia, milhares de pessoas foram às ruas protestar contra tudo aquilo que estava ali - primeiro, o aumento da passagem de ônibus; depois, contra uma espécie de mal-estar atualizado na civilização. Um mal-estar até então desapercebido pelos narradores da mídia tradicional, e que já podia ser capturado e transmitido ao vivo pelos celulares.

A chegada do meu filho, que nesta semana completa seis anos, mudou, claro, muita coisa na minha vida. Isso era óbvio e esperado.

O que não esperava é que a paternidade mudaria também minha relação com os aparelhos eletrônicos: para acompanhar e escrever sobre as manifestações a 90 quilômetros do epicentro da revolta, precisava de um celular melhor que levasse ao meu laptop o que aquela pensão não oferecia: conexão.

Foi minha primeira experiência forçada com home office.

Quando meu filho teve alta e eu voltei a São Paulo, me senti como quem mergulha pouco antes do tsunami. Não encontrei pedra sobre pedra na superfície - mas essa é outra história.

Seis anos depois, hoje faço praticamente tudo por smartphone. Vejo filmes que vou resenhar. Recebo documentos. Pago por serviços. Peço motoristas. Compartilho imagens e informações. Leio livros. (Ainda guardo como ouro minha coleção de CDs, DVDs e outros símbolos do mundo analógico por pura memória afetiva, mas essa também é outra história).

Não fosse a urgência e a necessidade, eu poderia ter tomado a outra rota da bifurcação, mais ou menos como fez meu pai, que desdenhou a chegada dos PCs e manteve nas mesas do escritório uma dúzia de máquinas de escrever até serem cobertos, todos eles, de poeira.

Não fosse o celular (e minha conexão 4G, que em breve também vai virar museu), eu não teria chegado a tempo ao meu primeiro compromisso no Festival Path, maior evento de inovação e criatividade do país - e que, neste ano, foi apresentado pelo TAB.

De dentro de um ônibus intermunicipal, pude calcular o tempo (e o preço) de uma corrida até a Paulista, onde ouviria a Hortência falar de sua carreira. Quando a conta apontava a diferença entre o trajeto de carro e do metrô da rodoviária até a Paulista, saltei no primeiro sinal fechado e embarquei no Uber. Cheguei a tempo de ouvir a ex-jogadora de basquete dar bom dia.

Em uma oficina futurista que aconteceria naquele mesmo dia, revi o impacto de uma decisão de seis anos atrás (praticamente ontem) em um vídeo curto que mostrava um sujeito diante de uma fila de blocos de diferentes tamanhos. Um empurrão no menor leva ao tombo do último bloco ao fim da linha. Só então ele se espantava com a força de um processo iniciado lá atrás.

Alguém poderia imaginar o mundo como organizado hoje quando Steve Jobs apresentou o primeiro iPhone, em 2007? Eu, que até então reconhecia a hierarquia das notícias pelo número da página do jornal, não só não imaginava como desdenhava. Telefone era pra dizer alô, lembra?

No Path, pude sentir o vento produzido pelas quedas de alguns pequenos blocos.

Ainda é cedo para avaliar os impactos, mas prever as consequências já não é imaginação. É exercício proposto em workshop, onde os participantes podem pontuar em cards os benefícios e malefícios de um futuro em que cidades flutuantes terão políticas tecnológicas independentes dos Estados-nação, wearables traduzirão automaticamente nossas conversas para outras línguas e cidadãos podem obter benefícios ou punição conforme a avaliação de seu crédito social.

As mudanças incubadas neste momento apontam também para um mundo onde casas cognitivas podem chamar a ambulância se alguém de dentro desmaiar. Onde é possível produzir alimento em laboratório.

Onde gigantes do entretenimento duelam pelos valiosos segundos de atenção dos assinantes de streaming. Onde o gosto musical será cada vez mais organizado pela inteligência artificial - e o conceito de álbum será enterrado de vez.

Onde os pacientes, e não os hospitais, serão o centro do tratamento de doenças. Onde a ciência psicodélica poderá auxiliar nossa saúde mental. Onde possíveis medicamentos canábicos poderão produzir dinheiro e soluções, e não presídios.

Onde cinema, games e realidade virtual terão fronteiras cada vez menores e poderão pautar nossas experiências mais reais.

Em diferentes níveis de evolução, as estruturas do novo mundo que se desenha mostram uma linha tênue entre disrupção e distopia.

Problematizar isso não é frear o inevitável. É impedir o flerte com o passado.

Pela psicanálise, sabemos que a insegurança é o efeito colateral das transformações; quanto mais rápidas, maior a romantização do passado e das soluções que sequer arranham as respostas para questões atualizadas - a principal delas, como sobreviver e nos reeducar em um mundo onde as ferramentas consagradas de produção de riqueza e conhecimento estão enferrujando?

Os sintomas dessa reação podem ser diagnosticados nos afetos políticos, cada vez mais baseados no medo - a desinformação é o ativo para vender a salvação inspirada em algum lugar do passado. A Idade Média, por exemplo.

"Então por que, em vez de analisar as razões do voto na época da eleição, não se educa o eleitor durante os quatro anos dos mandatos", pergunta um observador na plateia de um debate sobre o impacto da internet nas últimas eleições, influenciadas por bots e fake news.

Apontar para o futuro é apontar as limitações do presente: ainda não estamos lá, assim como ainda estamos longe de encontrar a mais justa adequação entre produção e sustentabilidade.

Quem dá o alerta é o especialista em sustentabilidade urbana Fernando Penedo: é preciso tirar as pessoas do conforto para entendermos que o conforto não deu certo. As empresas precisam entender que a destruição do planeta afeta os negócios delas. E é preciso reconhecer que não temos ainda o hábito de ouvir e sentar com todos os atores envolvidos na cadeia produtiva; quando o assunto é sustentabilidade, temos apenas, e por enquanto, o hábito de falar e convencer.

Em tempos de terraplanismo, falar em "retrocesso" não resolve o problema, como mostrou um painel sobre soluções não-óbvias. É preciso dar nome aos bois e entender o que está por trás dos fenômenos e por que as pessoas estão falando nisso agora.

Mas calma lá: nossa geração não é a única que sente vertigem com a velocidade das transformações, afirma Michell Zappa.

É como definiu o publicitário Eco Moliterno, no painel sobre a biometria do coração: a tecnologia assusta desde que o fogo foi inventado.

O mundo que se desenha pode ser assustador, mas também pode ser mais diverso. É o que indicam as reivindicações contemporâneas de espaço, seja no cinema, seja na literatura, seja no acolhimento a refugiados, seja nas periferias como espaço de inovação, seja na expansão dos muros do conhecimento na produção científica, seja no desmonte dos estereótipos, seja no hackeamento do conceito clássico de educação, seja na abolição de fantasmas como "ideologia de gênero", seja na compreensão de que comer é um ato político.

Um evento como o Path é uma oportunidade de reunir criadores, criações e criaturas na mesma sala de discussão não só para apresentar as novidades, mas para dizer o que nos espanta e o que nos inspira nas mudanças inciadas hoje, aqui e agora. É como um jogo de blocos. Do encontro pode sair tudo - menos a desculpa de que ninguém ali sabia que o novo sempre vem.

Otimista ou não, o futuro já é.

Dele a única certeza é que já não seremos os mesmos nem viveremos como nossos pais.