De Coringa a Bacurau: séries e filmes nos fizeram olhar no espelho em 2019
O ano termina com uma sensação quase unânime: 2019 foi pesado. Como se não bastassem os dramas da vida real, passamos por esses doze meses assistindo em todo tipo de tela à nossa própria realidade. Muitas vezes, inclusive, quisemos ultrapassar a fronteira física e exigir mudanças narrativas conforme nosso próprio entendimento de mundo. Não é à toa que conseguiram forçar um estúdio a recriar um personagem e outro a encerrar uma trilogia, que seguia rumos que os fãs não haviam imaginado.
Passamos longas horas assimilando o fim do nosso relacionamento com "Game of Thrones" e outras tantas revivendo fatos reais e violentos, com o boom das séries e filmes "true crime".
Afinal, parece que o audiovisual já sacou que a ficção não consegue mais superar a realidade. Até as histórias ditas distópicas, como "Bacurau" e "Parasita", falavam do presente. A obscuridade da desinformação desses tempos também invadiu as narrativas e até quem faz campanha contra as vacinas (pasme!) foi tema de alguma história.
De uma forma ou de outra, enxergamos as telas como espelho das nossas questões mais urgentes, essas mesmas que "Black Mirror" não consegue mais superar.
"Coringa": o sistema como vilão
No quadrinho "A Piada Mortal", Coringa diz que basta "um dia ruim" para transformar alguém saudável em um lunático. Já vimos esse filme algumas vezes, mas a premissa da aventura solo do vilão do Batman é traçar, passo a passo, a transformação de um ser humano falido em um serial killer, símbolo de revolta contra o sistema. O filme se tornou um dos grandes blockbusters de 2019 e suscitou polêmica e discussões: afinal, Coringa é a causa de uma sociedade doente ou sintoma de um mundo cruel e violento?
"A violência é sempre um fato social. Ela só pode ser compreendida e explicada dentro do seu contexto econômico, político e cultural", disse ao TAB Jacob Goldberg, doutor em psicologia e autor do livro "Direito no Divã". "Ou a pessoa devolve na mesma linguagem do crime e da agressão, em um mecanismo sádico de usar o sofrimento que inflige para reparar o que viveu; ou consegue uma saída psicanalítica, cultural, religiosa, artística, para sublimar o que viveu", comenta. O filme causou temor justamente porque Gotham City não é uma cidade totalmente fictícia. " Corremos esse risco, basta olhar para o Rio de Janeiro", diz Goldberg.
"Bacurau": distopia pernambucana
"Bacurau" furou a bolha do chamado filme de autor e levou mais de 700 mil pessoas aos cinemas. A produção pernambucana acabou virando um símbolo de resistência em tempos de Jair Bolsonaro, embora Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles tenham começado a escrever a história de Bacurau há 10 anos. A cidadezinha fictícia carrega no DNA muito do Brasil. Há ali uma diversidade de corpos e uma relação conflituosa entre os moradores, políticos e um grupo de estrangeiros querendo transformar a região em um grande safari humano.
"Bacurau" é o maior exemplo de como o deslocamento do realismo para a distopia serve perfeitamente como uma lupa para reler (e entender) o momento político atual do país. O mesmo aconteceu com "Divino Amor", outro filme pernambucano que estreou no início de 2019, e que mostra, num futuro próximo, como o fanatismo neopentecostal cria artimanhas para vigiar e punir a sociedade.
"O Escolhido": a onda da ficção anticientífica
"Medicina traz morte." A frase está escrita na parede da casa onde deveria funcionar um posto de saúde em um vilarejo do Pantanal, onde três médicos são recebidos a pau e pedra quando chegam para vacinar a população. Parece familiar?
As cenas iniciais de "O Escolhido", série brasileira da Netflix, mostram que a vida não está fácil para os cientistas em um mundo mediado por desinformação, gurus e fundamentalismos, onde grupos se organizam para boicotar vacinas. Na obra, um líder que se diz enviado de Deus tenta a todo custo, inclusive com meios mais violentos, evitar que sua comunidade tenha contato com os valores do mundo exterior.
Eis o mundo de 2019. Com o argumento de que o Estado quer controlar suas vidas, até terraplanistas fazem conferências - eles, inclusive, são tema do documentário "A Terra é Plana", produzido também pela Netflix este ano.
"Game of Thrones": o fim que não aceitamos
Hoje as coisas estão mais calmas, mas em maio, a comoção em torno da última temporada de "Game of Thrones" mexeu com coração e mentes de milhões de pessoas no Brasil e no mundo. Parecia o casamento perfeito — e foi, durante muito tempo —, mas essa relação chegou ao fim deixando uma das partes inconformada com o desfecho. Houve até quem propusesse a regravação do episódio derradeiro, com um final reescrito. O resultado? Foi a temporada mais mal avaliada no site IMDb.
A reação majoritariamente negativa do público parece dizer que, sim, temos uma dificuldade tremenda de lidar com o fim de praticamente qualquer coisa: de séries, de livros, de relacionamentos, de empregos, da vida. As sete temporadas fizeram criar uma relação afetiva entre os espectadores e os personagens da história de George R.R. Martin, mas parece que a compulsão dos dias de hoje, que nos faz consumir produtos de ficção com a mesma vontade de recompensa com que nos alimentamos de fast-food e açúcar, nos deixa inquietos e descontentes com o final de qualquer jornada.
"Sonic": refaz isso aí!
A essa altura do ano, era para o live-action "Sonic - O Filme" já ter estreado nos cinemas, mas qual foi a reação do público quando a Paramount Pictures colocou na praça o primeiro trailer do filme? Fãs do clássico dos videogames se revoltaram com o visual "demasiadamente humano" do ouriço azul. No Twitter, houve quem comparasse Sonic a um personagem do Trenzinho Carreta Furacão (quem dera fosse...). A gritaria foi tanta que os produtores precisaram repaginar o personagem e atrasar seu lançamento para fevereiro de 2020 — pena que não fizeram o mesmo estardalhaço para "Cats", já eleito um dos piores filmes do ano, tão errado que vai ser "recolhido" e substituído por uma versão menos tosca. Quem assistiu ao filme garante que não tem nem como consertar.
Numa era em que artistas e projetos são "cancelados" facilmente nas redes sociais, o caso mostra que os testes de audiência atingiram o ápice, a ponto de uma produção mudar a essência de um personagem antes mesmo de o filme ser lançado. E se existe a certeza de que a nostalgia é aposta segura em qualquer projeto, é preciso também saber lidar com esse campo minado afetivo, onde todos os fãs se sentem donos da história.
"Star Wars": a serviço dos fãs
Bom exemplo de como o público pode mudar o andamento de algum projeto estreou semana passada nos cinemas. A terceira parte da última trilogia do Star Wars deu uma freada em toda mudança proposta no filme anterior, "Os Últimos Jedi", que havia animado os críticos e desagrado aos fãs veteranos, que viram certos dogmas da franquia serem implodidas no espaço.
Mas há, neste caso, uma questão que já desagradava a muitos seguidores desde o primeiro filme da trilogia. Se por um lado os novos personagens, antenados com temas do nosso tempo, democratizassem o interesse e evitassem que a série se fechasse numa bolha, por outro, teve quem não suportou ver uma personagem feminina como protagonista ou um negro como herói.
Por fim, "A Ascensão Skywalker" deixou de lado sutileza e criatividade para ancorar-se unicamente na nostalgia (olha ela aí mais uma vez). Nossa repórter Letícia Naisa, que nunca tinha visto nenhum filme da franquia, e não tinha nenhum laço afetivo com o universo, foi assistir e conta aqui o que achou.
"Watchmen": arte e política
Quando Alan Moore e Dave Gibbons criaram a HQ "Watchmen", em 1986, o maior temor do mundo eram as bombas nucleares. Em 2019, quando Damon Lindelof criou uma continuação da história para a HBO, a ameaça no ar no Ocidente passou a ser os supremacistas brancos. O elogiado seriado da HBO falou de racismo, violência policial, colonialismo e o controle de armas nos EUA.
Rapidamente alguns fãs correram para sites como Metacritic e Rotten Tomatoes para criticar a série, acusando-a de ser "muito política" e com uma clara "agenda de esquerda". Explicitando um campo de batalha entre esquerda e direita no terreno da cultura geek, muito embora a cultura pop sempre esteve atrelada a mensagens políticas e progressistas — dos personagens da Marvel de Stan Lee à saga dos rebeldes contra o poder totalitário em "Star Wars".
"Black Mirror": ninguém se choca mais
"O mundo é muito Black Mirror, meu". Nunca uma frase fez tanto sentido. Em um episódio da nova temporada da série britânica, um homem cansado dos vícios em uma rede social faz de tudo para falar com seu CEO. É difícil, no entanto, encontrar o executivo, que estava em uma montanha fazendo retiro de silêncio e refletindo sobre o monstro que criou. Aos mais antenados no noticiário de tecnologia, tudo parece uma sátira de Jack Dorsey, CEO do Twitter, que fez o mesmo no final de 2018.
Poucos meses após a estreia do episódio, a China anunciou que estava criando um programa de crédito social, no qual — veja só — todos os cidadãos têm uma nota de acordo com o seu comportamento. Os direitos de cada um são relacionados à pontuação. Diferentemente do seriado, no entanto, no caso chinês a nota é dada pelo governo, que usa vigilância constante com tecnologias de reconhecimento facial. "Black Mirror" não foi tão longe.
Com expectativa alta dos fãs, a quinta temporada estreou, mas não fez o mesmo barulho. Com episódios pouco comentados, é o sinal de que a gente já não se surpreende com mais nada em 2019. E como bem mostrou "Years and Years", série da HBO que acompanha uma família durante os próximos 15 anos, o futuro nos aguarda com as mesmas questões de hoje.
"Os Vingadores": Quem poderá nos salvar?
Thanos exterminou metade do planeta com um estalar de dedos, mas fora das telas ele conseguiu um feito maior: arrasar com cerca de 80% das salas de cinema no Brasil, deixando os distribuidores e realizadores nacionais em desespero. O recorde de "Os Vingadores: Ultimato" é mundial e só enfatiza que o futuro do cinema está atrelado às grandes franquias de super-heróis, que se desdobram em multiversos e sagas secundárias sem fim - o que fez o mestre Martin Scorsese reagir, dizendo que essas produções mais se parecem a um parque de diversões.
Mas toda essa força simboliza também uma geração marcada pela carência de referências e pela busca desesperada por heróis - na política, no trabalho, nas relações afetivas, estamos à espera da salvação. Segundo Leda Tenório da Motta, professora no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, toda a mitologia contemporânea é reconduzida aos velhos relatos lendários. "E toda a beleza disso é deixar ver os criadores da indústria cultural como os mitógrafos da atualidade e suas criaturas, como os novos heróis legendários. Há Titãs nas mídias, nas propagandas dos sabões e detergentes."
"Parasita": a eterna luta de classes
Com influência hitchcockiana, o filme sul-coreano "Parasita" ultrapassou as barreiras do cinema oriental com uma história sobre o capitalismo. Apesar de falar muito do atual estado das coisas na Coreia do Sul, a trama olha para um presente universal — delirante, tecnológico e ainda mais segregado em todo o mundo. Não é apenas sobre a invasão do 5G, mas também sobre como o sistema constrói (e mantém) relações de subserviência.
Parece cabeçudo, mas o filme que ganhou Cannes e tem grandes chances no Oscar do ano que vem usa o suspense e o humor involuntário para contar a história de duas famílias, os Kim, que são pobres e vivem num porão, e os Park, abastados e habitantes de uma mansão luxuosa. Os primeiros irão se "infiltrar", um a um, na vida da família rica, empregando-se em diferentes funções de seu cotidiano. Essa temática das classes também está em outro ótimo filme que estreou no início de 2019, "Nós", do americano Jordan Peele.
"O Mecanismo": o herói que não é mais herói
A segunda temporada de "O Mecanismo", a famigerada série de José Padilha sobre os acontecimentos da Lava Jato e suas implicações na política, tomou distância em relação ao juiz Rigo, personagem inspirado no atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, pintado inicialmente como herói — e não apenas na trama.
A mudança na narrativa seguiu uma virada de chave na própria percepção do criador da série. Se antes Padilha chamava Moro de herói, pouco antes da segunda temporada entrar na Netflix, o diretor chamou o juiz de "salame fatiado" — e isso porque a "Vaza Jato", como ficaram conhecidas as supostas conversas reservadas entre Moro e os procuradores do MPF (Ministério Público Federal), ainda não havia colocado em xeque os procedimentos da operação.
A exemplo do que sentia por outro ídolo, o ex-goleiro Bruno, o flamenguista José Padilha disse que não podia reclamar antes "porque não sabia do assassinato que ele ia cometer". O assassinato, neste caso, era o pacote anticrime do ministro que, segundo o diretor, era um pacote "pró-milícia". Ao TAB, Padilha enviou uma carta, sustentando sua visão contra antigos partidos: "A política não implica corrupção sistêmica. O que implica corrupção sistêmica é a política viciada, que PSDB, PMDB e PT e outros partidos mais implantaram no país". Essa visão faz de "O Mecanismo" uma série bolsonarista, na opinião de um espectador, o sociólogo Jessé de Souza. "Quando você destrói as crenças na democracia, você anseia por um antidemocrata", disse ao TAB.
"Era uma vez em Hollywood": tudo é verdade
Quentin Tarantino fez fama coreografando a violência. A diferença em "Era Uma Vez em Hollywood" (para muitos, o melhor trabalho do americano nos últimos anos) é que se trata de uma trama baseada em um crime real e chocante: a morte brutal da atriz Sharon Tate, há 50 anos, pela gangue de Charles Manson.
Ao adaptar (ainda que com liberdade artística) um crime real à sua estética, Tarantino adere a uma fórmula que vem ganhando força no mundo do entretenimento, o boom das séries de investigação, que abordam crimes com tom documental, como "O Desaparecimento de Madeleine McCann", "Conversando com um Serial Killer — Ted Bundy" e o brasileiro "Bandidos na TV" — todos da Netflix. Em 2020, o Brasil vai testar a fórmula na tela grande com o filme "A Menina que Matou os Pais", sobre Suzane Von Richthofen.
Para o professor e pesquisador Thiago Soares, debater assassinatos reais e especular sobre os culpados gera um fascínio deslocado da normalidade. "É algo que interessa do ponto de vista narrativo. Desde a contação de histórias no passado, o terror sempre esteve presente", afirma.
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