O ano termina com uma sensação quase unânime: 2019 foi pesado. Como se não bastassem os dramas da vida real, passamos por esses doze meses assistindo em todo tipo de tela à nossa própria realidade. Muitas vezes, inclusive, quisemos ultrapassar a fronteira física e exigir mudanças narrativas conforme nosso próprio entendimento de mundo. Não é à toa que conseguiram forçar um estúdio a recriar um personagem e outro a encerrar uma trilogia, que seguia rumos que os fãs não haviam imaginado.
Passamos longas horas assimilando o fim do nosso relacionamento com "Game of Thrones" e outras tantas revivendo fatos reais e violentos, com o boom das séries e filmes "true crime".
Afinal, parece que o audiovisual já sacou que a ficção não consegue mais superar a realidade. Até as histórias ditas distópicas, como "Bacurau" e "Parasita", falavam do presente. A obscuridade da desinformação desses tempos também invadiu as narrativas e até quem faz campanha contra as vacinas (pasme!) foi tema de alguma história.
De uma forma ou de outra, enxergamos as telas como espelho das nossas questões mais urgentes, essas mesmas que "Black Mirror" não consegue mais superar.
"Coringa": o sistema como vilão
No quadrinho "A Piada Mortal", Coringadiz que basta "um dia ruim" para transformar alguém saudável em um lunático. Já vimos esse filme algumas vezes, mas a premissa da aventura solo do vilão do Batman é traçar, passo a passo, a transformação de um ser humano falido em um serial killer, símbolo de revolta contra o sistema. O filme se tornou um dos grandes blockbusters de 2019 e suscitou polêmica e discussões: afinal, Coringa é a causa de uma sociedade doente ou sintoma de um mundo cruel e violento?
"Bacurau" furou a bolha do chamado filme de autor e levou mais de 700 mil pessoas aos cinemas. A produção pernambucana acabou virando um símbolo de resistência em tempos de Jair Bolsonaro, embora Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles tenham começado a escrever a história de Bacurau há 10 anos. A cidadezinha fictícia carrega no DNA muito do Brasil. Há ali uma diversidade de corpos e uma relação conflituosa entre os moradores, políticos e um grupo de estrangeiros querendo transformar a região em um grande safari humano.
"Medicina traz morte." A frase está escrita na parede da casa onde deveria funcionar um posto de saúde em um vilarejo do Pantanal, onde três médicos são recebidos a pau e pedra quando chegam para vacinar a população. Parece familiar?
Eis o mundo de 2019. Com o argumento de que o Estado quer controlar suas vidas, até terraplanistas fazem conferências - eles, inclusive, são tema do documentário "A Terra é Plana", produzido também pela Netflix este ano.
"Game of Thrones": o fim que não aceitamos
Hoje as coisas estão mais calmas, mas em maio, a comoção em torno da última temporada de "Game of Thrones" mexeu com coração e mentes de milhões de pessoas no Brasil e no mundo. Parecia o casamento perfeito — e foi, durante muito tempo —, mas essa relação chegou ao fim deixando uma das partes inconformada com o desfecho. Houve até quem propusesse a regravação do episódio derradeiro, com um final reescrito. O resultado? Foi a temporada mais mal avaliada no site IMDb.
A essa altura do ano, era para o live-action "Sonic - O Filme" já ter estreado nos cinemas, mas qual foi a reação do público quando a Paramount Pictures colocou na praça o primeiro trailer do filme? Fãs do clássico dos videogames se revoltaram com o visual "demasiadamente humano" do ouriço azul. No Twitter, houve quem comparasse Sonic a um personagem do Trenzinho Carreta Furacão (quem dera fosse...). A gritaria foi tanta que os produtores precisaram repaginar o personagem e atrasar seu lançamento para fevereiro de 2020 — pena que não fizeram o mesmo estardalhaço para "Cats", já eleito um dos piores filmes do ano, tão errado que vai ser "recolhido" e substituído por uma versão menos tosca. Quem assistiu ao filme garante que não tem nem como consertar.
Bom exemplo de como o público pode mudar o andamento de algum projeto estreou semana passada nos cinemas. A terceira parte da última trilogia do Star Wars deu uma freada em toda mudança proposta no filme anterior, "Os Últimos Jedi", que havia animado os críticos e desagrado aos fãs veteranos, que viram certos dogmas da franquia serem implodidas no espaço.
Mas há, neste caso, uma questão que já desagradava a muitos seguidores desde o primeiro filme da trilogia. Se por um lado os novos personagens, antenados com temas do nosso tempo, democratizassem o interesse e evitassem que a série se fechasse numa bolha, por outro, teve quem não suportou ver uma personagem feminina como protagonista ou um negro como herói.
Quando Alan Moore e Dave Gibbons criaram a HQ "Watchmen", em 1986, o maior temor do mundo eram as bombas nucleares. Em 2019, quando Damon Lindelof criou uma continuação da história para a HBO, a ameaça no ar no Ocidente passou a ser os supremacistas brancos. O elogiado seriado da HBO falou de racismo, violência policial, colonialismo e o controle de armas nos EUA.
Rapidamente alguns fãs correram para sites como Metacritic e Rotten Tomatoes para criticar a série, acusando-a de ser "muito política" e com uma clara "agenda de esquerda". Explicitando um campo de batalha entre esquerda e direita no terreno da cultura geek, muito embora a cultura pop sempre esteve atrelada a mensagens políticas e progressistas — dos personagens da Marvel de Stan Lee à saga dos rebeldes contra o poder totalitário em "Star Wars".
Imagem: Divulgação/Netflix
"Black Mirror": ninguém se choca mais
"O mundo é muito Black Mirror, meu". Nunca uma frase fez tanto sentido. Em um episódio da nova temporada da série britânica, um homem cansado dos vícios em uma rede social faz de tudo para falar com seu CEO. É difícil, no entanto, encontrar o executivo, que estava em uma montanha fazendo retiro de silêncio e refletindo sobre o monstro que criou. Aos mais antenados no noticiário de tecnologia, tudo parece uma sátira de Jack Dorsey, CEO do Twitter, que fez o mesmo no final de 2018.
Poucos meses após a estreia do episódio, a China anunciou que estava criando um programa de crédito social, no qual — veja só — todos os cidadãos têm uma nota de acordo com o seu comportamento. Os direitos de cada um são relacionados à pontuação. Diferentemente do seriado, no entanto, no caso chinês a nota é dada pelo governo, que usa vigilância constante com tecnologias de reconhecimento facial. "Black Mirror" não foi tão longe.
Mas toda essa força simboliza também uma geração marcada pela carência de referências e pela busca desesperada por heróis - na política, no trabalho, nas relações afetivas, estamos à espera da salvação. Segundo Leda Tenório da Motta, professora no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, toda a mitologia contemporânea é reconduzida aos velhos relatos lendários. "E toda a beleza disso é deixar ver os criadores da indústria cultural como os mitógrafos da atualidade e suas criaturas, como os novos heróis legendários. Há Titãs nas mídias, nas propagandas dos sabões e detergentes."
Imagem: Reprodução
"Parasita": a eterna luta de classes
Com influência hitchcockiana, o filme sul-coreano"Parasita" ultrapassou as barreiras do cinema oriental com uma história sobre o capitalismo. Apesar de falar muito do atual estado das coisas na Coreia do Sul, a trama olha para um presente universal — delirante, tecnológico e ainda mais segregado em todo o mundo. Não é apenas sobre a invasão do 5G, mas também sobre como o sistema constrói (e mantém) relações de subserviência.
Parece cabeçudo, mas o filme que ganhou Cannes e tem grandes chances no Oscar do ano que vem usa o suspense e o humor involuntário para contar a história de duas famílias, os Kim, que são pobres e vivem num porão, e os Park, abastados e habitantes de uma mansão luxuosa. Os primeiros irão se "infiltrar", um a um, na vida da família rica, empregando-se em diferentes funções de seu cotidiano. Essa temática das classes também está em outro ótimo filme que estreou no início de 2019,"Nós", do americano Jordan Peele.
Imagem: Divulgação
"O Mecanismo": o herói que não é mais herói
A segunda temporada de "O Mecanismo", a famigerada série de José Padilha sobre os acontecimentos da Lava Jato e suas implicações na política, tomou distância em relação ao juiz Rigo, personagem inspirado no atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, pintado inicialmente como herói — e não apenas na trama.
A mudança na narrativa seguiu uma virada de chave na própria percepção do criador da série. Se antes Padilha chamava Moro de herói, pouco antes da segunda temporada entrar na Netflix, o diretor chamou o juiz de "salame fatiado" — e isso porque a "Vaza Jato", como ficaram conhecidas as supostas conversas reservadas entre Moro e os procuradores do MPF (Ministério Público Federal), ainda não havia colocado em xeque os procedimentos da operação.
A exemplo do que sentia por outro ídolo, o ex-goleiro Bruno, o flamenguista José Padilha disse que não podia reclamar antes "porque não sabia do assassinato que ele ia cometer". O assassinato, neste caso, era o pacote anticrime do ministro que, segundo o diretor, era um pacote "pró-milícia". Ao TAB, Padilha enviou uma carta, sustentando sua visão contra antigos partidos: "A política não implica corrupção sistêmica. O que implica corrupção sistêmica é a política viciada, que PSDB, PMDB e PT e outros partidos mais implantaram no país". Essa visão faz de "O Mecanismo" uma série bolsonarista, na opinião de um espectador, o sociólogo Jessé de Souza. "Quando você destrói as crenças na democracia, você anseia por um antidemocrata", disse ao TAB.
"Era uma vez em Hollywood": tudo é verdade
Quentin Tarantino fez fama coreografando a violência. A diferença em "Era Uma Vez em Hollywood" (para muitos, o melhor trabalho do americano nos últimos anos) é que se trata de uma trama baseada em um crime real e chocante: a morte brutal da atriz Sharon Tate, há 50 anos, pela gangue de Charles Manson.
Para o professor e pesquisador Thiago Soares, debater assassinatos reais e especular sobre os culpados gera um fascínio deslocado da normalidade. "É algo que interessa do ponto de vista narrativo. Desde a contação de histórias no passado, o terror sempre esteve presente", afirma.
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